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Emenda ''pirata'' evitou crise militar, revela Passarinho



Carlos Marchi e João Domingos

O senador Jarbas Passarinho (PDS-PA) entrou nervoso no gabinete do presidente da Assembléia Nacional Constituinte, deputado Ulysses Guimarães (PMDB-SP), e mostrou-lhe o que dizia ser uma armadilha habilmente montada no texto votado em plenário. Algum astuto esquerdista, acusava, tinha acrescentado a palavra "civis" ao título da Seção II da Constituição. O que antes era para ser benefícios e obrigações de todos os funcionários da União passava a valer, como num passe de mágica, apenas para os servidores civis.

"E os militares?", cobrou, furioso, Passarinho. Naquele momento de transição para a democracia, os militares restavam como servidores de segunda linha, sem direito a férias, 13º salário, salário-família, licença-maternidade e licença-paternidade. Ulysses, ali, absorto, dava voltas para solucionar o impasse.

"Isso é uma provocação, presidente", argumentou Passarinho. O presidente da Constituinte coçou a calva bronzeada com calma estudada, como se pensasse que minas terrestres como aquela eram desarmadas por ele todos os dias. Deixou escapar, em pouco mais que um sussurro: "Eu não prestei atenção nisso." Em seguida, recuperou o fôlego e falou com voz mansa: "Temos de resolver isso."

Passarinho resignou-se: "Não há como. O texto já está na Comissão de Redação e não cabem mais emendas." Ulysses replicou, ainda com voz baixa, como se segredasse para as paredes não ouvirem: "Apresente uma emenda." Não podia, era contra o regimento da Constituinte, contrapôs Passarinho. "Apresente!", rebateu Ulysses, elevando o tom, como se desse uma ordem militar. Naquela noite, com discrição, Passarinho levou a emenda à Comissão de Redação.

Furtivamente, a emenda intempestiva de Passarinho madrugou para refazer a isonomia e salvar a incolumidade institucional. Entre o ocaso da votação e o advento da manhã seguinte, em plena Comissão de Redação - o último estágio antes da promulgação, com atribuição apenas para revisar equívocos ortográficos e recompor a coerência lógica -, o texto constitucional ganhou um quase imperceptível inciso novo. Que entrou, sem pedir licença nem ser votado, no fim do artigo 42, que tratava dos servidores militares.

Em linguagem cifrada, o novo inciso 11 recompunha os benefícios subtraídos: "Aplica-se aos servidores a que se refere este artigo o disposto no art. 7º, VIII (13º salário), XII (salário-família), XVII (férias), XVIII (licença-maternidade) e XIX (licença-paternidade)." O que já brindava os civis valeria para os militares.

O próprio Passarinho, que agora confessa essa saneadora transgressão executada em parceria com Ulysses, admite que a inserção pode ter sido o que o jargão político apelidou de "muamba", mas rejeita que ela seja ilegal. Isso porque o texto final saído da Comissão de Redação teve depois uma simbólica - e providencial - votação em plenário.

Em 2002, o constituinte Nelson Jobim (PMDB-RS), atual ministro da Defesa, admitiu ter enxertado dois artigos na Constituição, em comum acordo com Ulysses. "A Constituinte funcionou como a pilotagem de um fórmula 1 - o tempo todo, operamos no limite institucional", diz o deputado José Genoino (PT-SP).

Ulysses era o ponto de referência e equilíbrio. Na Constituinte, ele podia tudo, lembra Delfim Netto (PDS-SP). Foi amado e odiado. Quando suspendeu os trabalhos para analisar a mudança de regimento reivindicada pelo Centrão, em fins de 1987, o impetuoso deputado Haroldo Lima (PC do BBA), hoje diretor da Agência Nacional do Petróleo, alvejou-o, do plenário, com uma pouco respeitosa bola de papel de jornal, salpicando o gesto com palavrões.

No retorno dos trabalhos, em janeiro de 1988, produziu uma de suas frases épicas que quase virou crise institucional: apelidou as emendas autoritárias de 1969 de "Constituição dos Três Patetas" (referindo-se aos generais da Junta Militar que governou sob o AI-5). Ao entrar no plenário, foi ovacionado como o herói que retorna de uma guerra vitoriosa; o mais entusiasmado aplauso era de Haroldo Lima.

De qualquer forma, por causa das audiências públicas, na primeira etapa da Constituinte nada se fez sem muita pressão popular - o que beneficiou a esquerda: "Chegamos a ter 30 mil pessoas no Congresso em votações importantes", lembra Plínio de Arruda Sampaio (PT-SP). Um dos grupos mais organizados, conta, era o das centrais sindicais. O Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap) divulgava listas com notas de 0 a 10 para os congressistas que apoiavam ou rejeitavam projetos de interesse das centrais e distribuía cartazes pelo País. "O que eu ganhei de voto por causa disso na direita, no baixo clero! O sujeito dizia: ?Eu voto, mas me tira do cartaz, por favor!?"

A mobilização de fora para dentro da Constituição nem sempre era a favor das teses ditas progressistas. Que o diga o relator da Comissão das Minorias, Alceni Guerra, eleito pelo PFL-PR. Por semanas, padres usaram as homilias das igrejas da região de Pato Branco, base política de Alceni, que ele não poderia incluir duas medidas na Constituição - uma era o aborto; outra, o direito à orientação sexual, proposta de Genoino. Inflamados pelos sermões, os patenses começaram a ligar e a mandar telegramas ameaçadores. Os padres venceram - o aborto e o direito à orientação sexual ficaram fora do texto.

Durante a fase das subcomissões e comissões, a esquerda, designada para cargos-chave pelo líder do PMDB, Mário Covas, atropelou os conservadores. A história se repetia na Comissão de Sistematização, mas lá os constituintes se depararam com a dificuldade de alinhavar os textos num todo coerente. "Chegaram à Sistematização mais de 2.800 artigos", conta Bernardo Cabral (PMDB-AM), relator-geral da Constituinte. Coisas assim: "As viaturas federais serão pintadas de uma só cor; lei complementar decidirá a cor." Ou: "Homens e mulheres são iguais em direitos, exceto quanto à amamentação." Para quem acha que a Carta ficou longa, Cabral pondera: "Não queiram saber o sofrimento para chegar a 245 artigos."

"A Sistematização era para organizar o inorganizável", satiriza Delfim. "O que saiu das comissões era completamente ininteligível, não tinha fio condutor", opina o jurista Miguel Reale Júnior, então assessor de Ulysses.

Além disso, o regimento interno da Constituinte, elaborado pelo senador Fernando Henrique Cardoso (PMDB-SP), criara um sofisma: para derrubar no plenário uma medida aprovada pela maioria de 47 votos da Sistematização, seriam necessários 280 votos.

O constituinte Guilherme Afif Domingos (PL-SP) compara essa contradição com um conselho ouvido, três anos antes da Constituinte, do jovem economista Aníbal Cavaco Silva (hoje presidente de Portugal): "Besteiras são sempre feitas com maioria absoluta; corrigi-las exige quatro quintos dos votos."

DIREITA REORGANIZADA

O constituinte Bonifácio de Andrada (PDS-MG) admite que a centro-direita estava desarticulada, ao contrário da esquerda. Várias forças desse espectro então se juntaram para combater a esquerda na Sistematização - a "tropa de choque" de Sarney, cujo foco era manter o regime presidencialista e impedir que o mandato de seis anos fosse (muito) encurtado; parlamentares ligados ao poder financeiro; parlamentares que defendiam interesses da indústria e do comércio; e, por fim, parlamentares ligados à União Democrática Ruralista (UDR), que combatiam a reforma agrária.

As quatro vertentes formaram o Centro Democrático (logo apelidado de Centrão pelos esquerdistas) para enfrentar a esquerda na Sistematização. Em dezembro de 1987 começaram a virar o jogo no momento em que aprovaram, por 290 votos a 16, uma resolução que mudou o regimento.

Passou a valer o que fosse aprovado pelo plenário, e não mais o texto da Sistematização. A resolução criou o Destaque de Votação em Separado (DVS), que permitiria pinçar medidas para votá-las isoladamente - o que facilitaria o expurgo de passagens radicais.

Vinte anos depois, Miro Teixeira (constituinte pelo PMDB-RJ) admite que o texto aprovado pela Sistematização não representava o conjunto da Constituinte: "A Sistematização estava bem mais à esquerda do plenário." Mas logo a esquerda contra-atacou: passou a usar o DVS contra o Centrão. A Sistematização ficou travada. Seu presidente, o senador Afonso Arinos (PFL-RJ), combalido pela idade, quase não comparecia às sessões; um embate ideológico severo impedia votações.

"Uma Constituição tem de ser de centro, não pode ser de esquerda ou de direita", diz hoje Afif. "A visão da economia era autárquica. Tudo devia ser estatal, como se Estado fosse o povo", contesta Fernando Henrique. "A gente precisava radicalizar. Nosso pensamento era dominado pelo estatismo e pela idéia de uma sociedade socialista", admite Roberto Freire (PCB-PE).

Foi então que os dois lados descobriram a urgente e imperiosa necessidade de negociar, sob pena de a Constituição não vingar. O primeiro passo foi eleger dois novos vice-presidentes respeitados - Fernando Henrique, para segurar os radicais de esquerda; e Passarinho, para conter os excessos dos conservadores.

Dentro e fora do Parlamento, as articulações se sucediam. "Era comum que uma reunião durasse dez horas", lembra Genoino. "Foi altamente estafante", recorda Cabral. Todos os dias, de manhã, um grupo de elite de uns 30 parlamentares negociava o que seria votado no dia, revela Genoino: "Sem isso, a Constituinte não teria terminado."

Ainda assim, as negociações foram conturbadas e a improvisação era a regra. Fora do plenário, valia tudo. Genoino conta que em dado momento a esquerda apostou num racha dos conservadores. Ele e Vladimir Palmeira (PT-RJ) foram ao grupo que representava bancos e empresários da indústria e do comércio. Propuseram que, se rompessem a aliança com a UDR, a esquerda ajudaria a aprovar medidas de interesse deles. Mas a direita não rachou.

Na Sistematização, os trabalhos começaram a andar, embora lentamente. Em meio à algaravia de temas, a esquerda fincou pé na adoção do parlamentarismo e na redução do mandato de Sarney para quatro anos. Sarney aceitou negociar. Resignou-se com uma proposta de cinco anos de mandato, com a transição para o parlamentarismo no último ano - conta Fernando Henrique e confirma o próprio Sarney.

Todos aceitaram, menos Covas: "Vamos pro voto. Nós vamos ganhar, não temos de fazer acordo." Sonhava com o mandato de quatro anos e o parlamentarismo já. Errou a conta. Já articulado, o Centrão aprovou os cinco anos e fulminou o parlamentarismo.

Outra trincheira de encarniçada batalha foi o texto da saúde. A esquerda queria criar o SUS e fixar o conceito "direito de todos e dever do Estado", numa época em que os hospitais filantrópicos e conveniados só atendiam brasileiros de carteira assinada. "Tínhamos reuniões diárias com o Centrão.

Eles achavam o nosso projeto socializante", conta o constituinte Carlos Mosconi (PMDB-MG). O acordo veio quando a esquerda sugeriu que, ao lado do SUS, a saúde privada funcionaria como sistema complementar, abrindo as portas para a expansão dos planos de saúde privados.

Foi a primeira vez na História que se elaborou uma Constituição partindo do zero, e não de um projeto de juristas notáveis. "Nenhuma Constituição do mundo partiu do zero, nem mesmo a de 1789", ironiza Delfim, referindo-se à carta da Revolução Francesa.

No dia 22 de setembro de 1988 o líder do PT, Luiz Inácio Lula da Silva, discursou para explicar por que seu partido, embora assinando a Constituição, votaria contra o texto. Listou entre as razões a semana de trabalho de 44 horas (o PT queria 40), a definição do pagamento de um terço a mais de salário nas férias (queria em dobro), adicional de hora extra (queria em dobro) - todos temas que deveriam estar na legislação comum. "A gente achava que, se constasse da Constituição, esses direitos ficariam intocáveis", explica Freire, à época aliado do PT.

Enquanto a esquerda sonhava com a mágica de um socialismo imposto pela Constituição, o mundo virava de ponta-cabeça: 45 dias depois da promulgação, o Muro de Berlim caiu e a guerra fria perdeu sentido; três anos depois, a União Soviética se desintegraria, enquanto a globalização se consolidava. Freire e Genoino admitem que em 1988, anestesiada pela utopia socialista, a esquerda era incapaz de ver o mundo mudando. "Nós tínhamos clara consciência de que a globalização nascia. A esquerda não via porque se negava a enxergar", replica Afif.

O espírito que prevalecia na época não era o de reunir na Constituição apenas os grandes princípios ordenadores da Nação, mas enxertar no texto todos os elementos da vida nacional. Fernando Henrique dá um exemplo. Uma tarde, conta, recebeu em seu gabinete uma comissão de iradas bibliotecárias. Elas traziam uma reclamação na ponta da língua: "A palavra “bibliotecária” não aparece no texto. Não estamos na Constituição", vociferavam. "E por que tinham de estar?", perguntou - e ainda hoje se pergunta - um estupefato Fernando Henrique.

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