Roteiro trágico
Tantas vezes se ouviu, após a queda do Boeing da Gol em setembro do ano passado, matando 154 pessoas, seguida da quebra da cadeia de comando entre os controladores de vôos e a abissal demonstração de incapacidade do governo para dirimir um conflito ainda longe do desfecho, que era apenas questão de tempo uma nova tragédia.
Ouvia-se isso nas salas de embarque dos aeroportos, em conversas com empresários, jornalistas, em rodas de parlamentares, gabinetes de ministros. Todos temiam o que de fato se repetiu em proporções ainda mais terríveis. Não se acreditava é que pudesse acontecer de verdade, não sendo os passageiros de aviões suicidas potenciais.
Outra vez vão ser procuradas causas técnicas ou erros humanos, o que é sempre um melhor motivo para quem necessita viajar diante do que seria a outra alternativa: estar com a vida entregue a torres de controle operadas por controladores descontrolados de tráfego aéreo. Ou embarcando em aviões que decolam e pousam em pistas sem condições plenas de segurança sob chuva ou avariadas pelo uso.
Num caso, o risco é aleatório, como ser atropelado por um bêbado ao volante de um carro. Não se deixará de sair de casa por isso. No outro, é sistêmico e previsível, portanto, evitável, bastando que se saiba de sua existência. É mais grave. As empresas aéreas só não iriam à falência porque muito antes dirigentes dos órgãos responsáveis pela segurança da aviação e, no limite, o governo que os nomeou já teriam entrado em parafuso. É disso que se trata.
Mais fácil para todos é culpar o piloto, isentando especialmente o governo de responsabilidades pelas flagrantes omissões desde que o Boeing da Gol colidiu com um jato Legacy em circunstâncias ainda não suficientemente esclarecidas. Deixou 154 mortes e devassou ao país uma situação desconhecida de caos no sistema de segurança do tráfego aéreo e com a qual o governo não tem sabido lidar.
Falhas humanas e técnicas são sempre possíveis com equipamentos sofisticados, como os aviões. Absolutamente anormal por qualquer parâmetro internacional é que o mais grave acidente da história da aviação no país tenha perdido este triste recorde apenas 10 meses depois, quando a pista principal e molhada de Congonhas se revelou pequena para segurar o Airbus da TAM que terminou seu fatídico vôo do outro lado do aeroporto enterrado num edifício. Por ironia, da própria TAM. Morreram as 186 pessoas que estavam a bordo.
Confiança rompida
O precedente das investigações sobre a queda do Boeing da Gol dá ao novo caso a necessidade de uma transparência que jamais se fez necessária, dado o clima de confiança rompido pela longa sucessão de negaças oficiais sobre o ocorrido, os desmentidos em torno da insatisfação que se revelou verdadeira dos controladores de vôos, as suspeitas sobre a qualidade e quantidade dos aparelhos de radar e a cortina de fumaça que impede até hoje que se saiba sem dúvidas o que de fato aconteceu. Não há, por tudo isso, como evitar que a investigação sobre a tragédia com o Airbus seja profunda e isenta.
Suspeitas de irregularidades são muitas e preocupa que todas elas já estivessem em evidência, sem nenhuma solução, como não tiveram em 2003 os alertas do então ministro da Defesa, José Viegas, de que o contingenciamento de verbas federais para a rede de controle do tráfego aéreo já comprometia a segurança dos vôos. Agora, sabe-se que a pista de Congonhas fora reformada e entregue no começo de junho sem as ranhuras que facilitam a aderência no pouso e evitam o empoçamento da água de chuva. Um dia antes, quando um avião da Pantanal já derrapara na pista molhada, gravações das conversas de controladores de tráfego com pilotos davam conta desses riscos.
Ignorou-se o pior
Foi a Infraero que liberou a pista com a obra — das empreiteiras OAS e Queiroz Galvão e supervisão do IPT, Instituto de Pesquisa Tecnológica da USP — inacabada e programação para ser retomada em agosto. Por que a pressa? Para diminuir a irritação dos usuários nas férias de julho pela a rotina de atrasos e apagões? Se a pista estava segura mesmo assim, por que ainda fazer as ranhuras?
Fatos. É o que importa. Na segunda-feira, por exemplo, o ministro do Planejamento, Paulo Bernardo, conversou sobre a necessidade de agilizar o programa de reequipamento do setor aéreo com a ministra Dilma Rousseff. Sabia-se da gravidade. Só não se previa o pior.
É mais do que comum às autoridades se desculparem por problemas aéreos atribuindo a culpa a São Pedro. Mas até a paralisação de grandes aeroportos, como Guarulhos, em São Paulo, teoricamente por culpa de nevoeiro, tem sua explicação no habitual descaso oficial.
Os aeroportos nas áreas mais críticas estariam operando até sob nevasca se tivessem equipamentos para pousos de precisão — os ILS, Instrument Landing System, nas categorias dois (que permitem pousos com altura de 100 pés e alcance de 400 metros) e três (onde o avião pousa por instrumento, sem teto, e 100 metros de visibilidade).
Nossos aeroportos só têm o mínimo, o ILS-1, que permite pousos a 200 pés e 450 metros de visibilidade. Mas a metade dos aeroportos nem disso dispõe. Guarulhos até possui o ILS-2. Só que não o usa: o equipamento não está habilitado. Recentemente, um jato da TAP quase provocou uma tragédia em Guarulhos pela falta de orientação de precisão e comunicação adequada com a torre. A falta desses equipamentos não se deve a restrições fiscais. O custo unitário é um pouco acima de US$ 3 milhões — uma ninharia para salvar vidas.
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