Ruy Fabiano
Jornalista
Diz a história que Santos Dumont, pai da aviação, suicidou-se em face do desgosto de ver seu invento transformado em arma de guerra. Se vivo fosse, teria motivo para outra decepção suicida: a de ver que, em sua terra natal, seu invento continua tendo uso mortal. Tornou-se fator de transtorno, insegurança, tragédia e vexame.
Sábado passado, com os escombros de Congonhas ainda fumegando, aviões comerciais norte-americanos que chegavam a Manaus tiveram que retornar à sua base de origem, por falha no sistema elétrico daquele aeroporto. Vexame nacional, que fez com que o caos aéreo chegasse a níveis inimagináveis nos demais aeroportos do país e estendesse suas metástases para além das fronteiras.
Qual a repercussão de uma mancada dessas para a indústria do turismo e para a economia nacional? O fato de uma crise de tais proporções durar 10 meses, gerar os dois maiores desastres da história da aviação nacional, e não produzir uma única punição, uma única medida corretiva, já dá uma dimensão da presente tragédia.
Para não dizer que não houve nenhum gesto por parte do governo federal, registre-se a condecoração dada aos dirigentes da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) sexta-feira passada, 20/7, quando os bombeiros, em Congonhas, ainda removiam corpos carbonizados do Airbus da TAM.
Um espanto. A alguns pareceu escárnio; a outros, autismo político — o que é mais provável, sobretudo se se avaliar o que, na mesma sexta-feira, disse, irritado, o ministro da Defesa, Waldir Pires, aos jornalistas, na primeira manifestação das autoridades governamentais a respeito da tragédia, três dias depois de sua eclosão.
Pediu o ministro que não lhe cobrassem satisfações, pois não tinha responsabilidades em relação ao tráfego aéreo. Diante da perplexidade dos jornalistas, chegou ao requinte de sugerir que examinassem a lei. Como a pasta que dirige (?) é a que comanda a Aeronáutica, ficou no ar (sem trocadilho) a hipótese de que a crise o houvesse perturbado ao ponto de já não saber que cargo ocupa.
O empenho do governo federal em eximir-se de culpa, buscando atribuir o acidente a falhas mecânicas ou à imperícia do piloto, encerra uma visão estreita (e mesquinha) da crise.
Ela não começa nem acaba com aquele acidente — nem muito menos se restringe a ele.
Também não foi causada pelo acidente de 10 meses atrás, com a colisão entre um Legacy e um Boeing da Gol, na Amazônia. Aquela tragédia apenas levantou o véu da criminosa deficiência estrutural dos aeroportos brasileiros. O país, desde então, tomou conhecimento do ambiente de alto risco em que operam os controladores de vôo, responsáveis pela segurança aérea. Uns são servidores civis, outros militares. Fazem a mesma coisa, têm as mesmas responsabilidades, mas estão submetidos a códigos trabalhistas distintos e salários diferenciados. Por isso, o protesto deles gerou prisão para uns e coisa alguma para outros — e tumultos para todos nós.
Durante algumas semanas, pensou-se que a crise aérea era apenas isso, uma disfunção trabalhista, o que já não seria pouco. Mas era — e é — bem mais: é crise de gestão, falta de transparência no trato de recursos públicos, crise regulatória (o que torna mais espantosa a condecoração aos dirigentes da Anac, que deveriam, isto sim, ser submetidos a inquérito policial), abuso das empresas aéreas, com seus overbookings inaceitáveis e ganância criminosa, que faz com que uma delas, exatamente a envolvida com a tragédia de Congonhas, exiba como “primeiro mandamento” a frase cretina, que soa como confissão: “Nada substitui o lucro”.
Nada disso, óbvio, começou agora, na era Lula. Um tumor é lenta construção. Mas, quando detectado, exige providências consistentes e imediatas, sob pena de transformar-se em algo irreversível.
O que assusta é exatamente essa inaptidão gerencial do governo, o empenho em investir num jogo de culpas, desonesto e estéril. Em vez de bodes expiatórios, é preciso buscar soluções.
A crise deve servir também para repensar o Estado e, sobretudo, o uso distorcido — criminosamente distorcido — das agências regulatórias, expostas ao jogo fisiológico das nomeações político-partidárias, que lançam o contribuinte brasileiro à voracidade de empresários inescrupulosos, que acreditam mesmo que “nada substitui o lucro”. Nem a vida humana.
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