Leandro Fortes
A foto, estampada em todos os jornais da quarta-feira 16, é emblemática. Postado no lado esquerdo da imagem, sorridente e vitorioso, o presidente do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, não disfarça o contentamento. Responsável, uma semana antes, pela dupla libertação, em menos de 48 horas, do banqueiro Daniel Dantas, Mendes conseguiria muito mais nos dias posteriores à concessão dos habeas corpus. No lado direito, o ministro Tarso Genro, da Justiça, também com um esboço de sorriso, embora ninguém entenda o motivo. Genro, justo naquele instante, tinha colocado as tropas da Polícia Federal em retirada. Ao centro, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva mostra visivelmente seu desconforto. O principal vencedor não está na foto, paira sobre ela: é Dantas.
No dia anterior, terça-feira 15, o Brasil soubera do afastamento do delegado Protógenes Queiroz, presidente do inquérito que resultou na Operação Satiagraha e na prisão da quadrilha do banqueiro, como resultado de um processo interno de franca divisão da Polícia Federal e de súbito recuo do governo.
A desculpa apresentada, antes de esfarrapada, é risível. Segundo nota oficial, e sucessivas entrevistas do ministro Genro, o delegado Queiroz havia se afastado do inquérito para se dedicar a um curso na Academia de Polícia Federal, em Brasília, obrigatório para quem completa dez anos de serviço na corporação. Trata-se de um programa de apenas 30 dias de aulas presenciais.
Inicialmente, o encontro deveria ser somente entre Lula e Genro, mas a dupla libertação de Dantas havia instalado um mal-estar em Brasília, com ares de crise institucional. O ministro da Justiça havia levantado a hipótese de que, diante das provas recolhidas durante a Satiagraha, dificilmente o dono do Opportunity teria condições de se declarar inocente. O presidente do STF, não se sabe claramente por qual motivo, decidiu repreender Genro e o chamou de "incompetente". Foi quando, no Ministério da Defesa, Nelson Jobim, elo perdido entre tucanos e petistas, decidiu intervir.
Jobim não desembarcou na história à toa, Para muitos, no governo, foi extremamente bem-vinda a sua disposição de entrar na guerra aberta entre o Executivo e o Judiciário. No fim de semana posterior à Satiagraha, os principais assessores de Lula, entre os quais a ministra Dilma Rousseff, da Casa Civil, e Luiz Dulci, da Secretaria-Geral da Presidência, mostraram-se preocupados com a ousadia do delegado Queiroz em ter levado a investigação para dentro do Planalto. Colcaram a fatura na conta do colega Genro.
Queiroz grampeou, com autorização judicial, uma conversa de ex-deputado petista Luiz Eduardo Grenhalgh com o chefe de gabinete de Lula, Gilberto Carvalho. No diálogo, Greenhalgh solicita ajuda a Carvalho para descobrir se havia ou não uma investigação em curso contra gente do Opportunity. O ex-deputado também tentou interferir nas negociações para a fusão da Brasil Telecom-Oi.
Greenhalgh foi contratado por Dantas para atuar como lobista e informante. Alertado por uma reportagem da Folha d de S. Paulo de 26 de abril, o principal advogado do banqueiro, Nélio Machado, investiu na formação de uma rede para tentar descobrir a verdadeira dimensão da operação policial anunciada.
Amigo de Lula e com transito livre no Planalto, Greenhalgh pareceu o nome perfeito para o serviço, embora ele também tenha tentado cooptar outro ex-deputado do PT, o advogado Sigmaringa Seixas. Não é a primeira vez que Seixas aparece metido em assuntos de interesse de Dantas.
Em maio de 2006, o então parlamentar participou de estranho jantar na casa do senador Heráclito Fortes (DEM-PI). Organizado na surdina, após a revista Veja divulgar que havia recebido de Dantas um dossiê com supostas contas no exterior de Lula e outras autoridades, o convescote serviu, aparentemente, para o banqueiro negar ao então ministro Márcio Thomaz Bastos ter sido o autor da patranha. Outro presente no encontro foi o deputado petista José Eduardo Cardozo, também citado nas investigações da PF.
No mais, sozinho, Greenhalgh fez por merecer os honorários. Em 29 de maio, foi flagrado ao ligar para Carvalho e pedir informações sobre o processo e a investigação. Na conversa, classificou o delegado Queiroz de "meio descontrolado".
O grampo expôs a capilaridade do esquema de Dantas, mas, principalmente, atiçou as vivandeiras. Deu munição, ainda, para a turma acolhida pelo diretor-geral da PF, delegado Luís Fernando Corrêa, substituto de Paulo Lacerda do cargo, ainda em busca de afirmar sua autoridade na corporação.
Quando se sentou com Mendes, Genro e Jobim para assinar um armistício político na terça 15, o presidente Lula tinha, na verdade, uma noção difusa da crise e nenhuma informação do que, de fato, ocorria dentro da PF.
Lula queria, apenas, e por muitas razões, estancar a crise aberta entre o STF e o governo e, assim, evitar que um assunto policial contaminasse as relações de dois poderes da República. O presidente só parece não ter se dado conta dos efeitos políticos. Os últimos lances empurraram ao colo de Lula um problema que, por justiça dos fatos, deveria ser, no mínimo, dividido com os "gênios" financistas da era FHC que deram poder ao dono do Opportunity. A muitos soou que o governo petista teme o resultado das investigações.
Em nome, outra vez, de uma suposta governabilidade, costurou-se, ali, a fantasia da necessidade de conter os "excessos" da PF e rever a lei sobre abuso de autoridade. Figuras emblemáticas como o ex-prefeito de São Paulo Celso Pitta e o mega especulador Naji Nahas tinham sido submetidos à humilhação das algemas. Ao formalizar as "fraquezas" do inquérito conduzido por Queiroz, o governo conseguiu, ainda, a proeza de municiar a defesa de Daniel Dantas com o argumento de que, por isso mesmo, a coleta de provas foi feita de forma irregular. Razão pela qual o advogado Nélio Machado apressou-se em anunciar um pedido de "argüição de suspeiçào" para também afastar do caso o juiz Fausto De Sanctis, da 6a Vara Criminal Federal de São Paulo.
Ataca-se Queiroz pelas 240 páginas do relatório parcial que embasou os pedidos de prisão. Há, é claro, erros de análise no documento, além de afirmações peremptórias não amparadas, ali, por provas contundentes. Mas o trabalho definitivo, no qual a turma do delegado se baseia, tem quase 7 mil páginas. Imagina-se que o texto contenha as informações que permitiram a Queiroz ser tão afirmativo em relação a políticos e jornalistas.
Do ponto de vista público, o resultado da reunião foi um desses teatros lamentáveis da política brasileira, no qual ambas as partes impingiram ao País um falso pacto de boa vizinhança ditado, explicitamente, pelo medo das circunstâncias. De um lado, Mendes precisava urgentemente se livrar da pecha de "libertador-geral da República" e do desgaste de ter se esforçado em soltar Dantas. Do outro, Genro precisava conter a bola-de-neve desencadeada pela Satiagraha e restaurar minimamente o poder de comando de Corrêa.
A dupla aceitou a encenação. "Houve uma divulgação superlativa (da imprensa) que não corresponde à nossa relação", disse Genro sobre Mendes. "Não fui bem compreendido", arrematou Mendes, sobre a razão de ter chamado o ministro de "incompetente".
O presidente do STF alegou ter tido outra intenção ao afirmar que não era atribuição do ministro avaliar a "culpabilidade" de Dantas. Ambos concordaram em baixar o tom das críticas e começar a discutir uma lei capaz de diferenciar quem, no Brasil, pode ou não ser algemado na hora de ser preso e qual a melhor maneira de retirar da Polícia Federal a prerrogativa de pedir ao Judiciário autorização para grampear alguém.
No mesmo dia, a PF deixou vazar duas notícias. Primeiro, o afastamento de Queiroz do inquérito. Depois, a inexplicável saída de férias de Corrêa, em meio ao tiroteio. Àquela hora, Lula havia retomado à rotina presidencial, certo de ter encerrado a crise. Doce ilusão.
Feito o estrago, o governo passou a impressão de ter se surpreendido com as repercussões negativas. Pressionado pela imprensa, Lula mostrou-se indignado com a possibilidade de Queiroz ter sido coagido a deixar o inquérito e pediu ao delegado para se manter no cargo. "Moralmente, esse cidadão (Protógenes) tem de continuar no caso até terminar esse relatório e entregar ao Ministério Público. A não ser que ele não queira. O que não pode é passar insinuações", disse.
O destino do delegado foi definido longe de Brasília, numa sala da Superintendência da PF em São Paulo, com os mesmos personagens que quase impediram a Satiagraha de ser deflagrada, em 8 de julho.
Ao menos dez delegados federais participaram do encontro, mas três deles representavam a gestão de Corrêa: o superintendente, Leandro Coimbra, o diretor de Combate ao Crime Organizado, Roberto Troncon, e o diretor de Combate a Crimes Financeiros, Paulo de Tarso Teixeira.
Com esse último, Queiroz mantém uma guerra particular. Explica-se: às vésperas da operação, ele negou-se a passar as informações da investigação a Teixeira, com medo de vazamento. O colega ficou furioso.
Teixeira foi peça-chave da estrutura da PF durante o governo Fernando Henrique Cardoso. Por duas vezes, presidiu o inquérito sobre o Dossiê Cayman, uma papelada falsa que imputava ao ex-presidente e a outras lideranças do PSDB uma conta no Caribe, na qual, supostamente, haveria mais de 300 milhões de dólares desviados dos cofres públicos brasileiros.
As investigações da PF, à época, obedeciam à lógica de submissão completa ao Planalto. Para se ter uma idéia, no segundo inquérito do Dossiê Cayman, Teixeira foi monitorado, pessoalmente, pela então secretária nacional de Justiça, Elizabeth Sussekind, quando realizou diligências em Miami, nos Estados Unidos, e em Nassau, nas Bahamas.
No encontro em que se definiu o afastamento de Queiroz do inquérito sobre Dantas, revelou-se, ainda, o grau de divisão interna da PF. Não por outra razão, decidiu-se pelas "férias" do diretor-geral, para não tornar ainda mais flagrante a disputa corporativa entre os herdeiros de Paulo Lacerda, partidários da autonomia total da corporação, e a turma de Corrêa, mais enquadrada no antigo conceito de alinhamento aos interesses do governo. Logo, um grupo passível de se adaptar mais rapidamente às reformas penais discutidas e acordadas com o STF. Menos grampos, menos algemas e menos constrangimentos.
A reunião em São Paulo durou mais de três horas e foi gravada. Para tentar amenizar a crise provocada pela saída do delegado Queiroz e fortalecer a tese de que ele não foi pressionado a sair, a PF autorizou, na quinta-feira 17, a divulgação de pouco mais de três minutos, editados pela corporação, da conversa dos delegados em São Paulo. São três trechos, colhidos aleatoriamente, nos quais nada se esclarece. Em nenhum deles Queiroz demonstra querer sair do inquérito. O mais próximo que se chega disso é uma fala na qual o delegado afirma não pretender reassumir o caso, mesmo depois de concluir o curso da Academia de Polícia. Por causa da divulgação de trechos da reunião, o Ministério Público ameaça ingressar com um processo contra a cúpula da PF.
Na quinta 17, após a repercussão negativa, dois delegados que haviam sido afastados, Karina Murakami e Carlos Pelegrini, foram convidados a retomar às investigações.
Longe de Brasília, a ação presidida pelo delegado Queiroz gerou um primeiro revertério contra Dantas. Com base nas investigações, De Sanctis abriu um processo criminal contra o banqueiro, o braço direito dele e ex-presidente da Brasil Telecom Participações Humberto Braz e o consultor Hugo Chicaroni, todos pelo crime de corrupção ativa. Segundo o juiz, existem "indícios suficientes" da participação dos três na tentativa de subornar o delegado da PF Victor Hugo Ferreira, auxiliar de Queiroz, com 1 milhão de dólares, para tirar os nomes de Dantas e a irmã, Verônica, do inquérito. Com a abertura do processo, os três passaram à condição de réus.
Braz e Chicaroni chegaram a pagar 129 mil reais ao delegado Ferreira, em duas parcelas, dentro de uma ação autorizada e monitorada pelo juiz Fausto De Sanctis. Foi neste episódio que Chicaroni revelou a preocupação de Dantas com juízes de primeira instância - como De Sanctis, que ele pensou também em subornar -, mas absoluta tranqüilidade com os trâmites nos tribunais superiores (STJ e STF), onde alegou usufruir de "facilidades". Por coincidência, numa interceptação de e-mails divulgada na semana passada pela Polícia Federal, advogados do dono do Opportunity revelam ter manobrado para que o pedido de liminar de habeas corpus caísse no plantão do ministro Gilmar Mendes. Caiu. E foi deferido duas vezes.
Nos e-mails, o ex-ministro do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) Luiz Carlos Lopes Madeira, um dos muitos advogados de Dantas, sugere que o pedido de liminar seja impetrado somente depois do recesso do Judiciário, quando o relator do pedido, o ministro Eros Grau, entrasse em férias. Isso porque, pelas regras do STF, durante o recesso, quem recebe os pedidos de liminar em caso de réu preso é o presidente do STF. Ou seja, Gilmar Mendes. "Insisto que não estou pensando no STJ. No STF, quem estará na presidência é o ministro Gilmar ou o ministro Cezar Peluso", conjectura o defensor de Dantas.
Madeira explica, em outro e-mail, como proceder para a estratégia ser um sucesso. "O relator (Eros Grau) viajou para São Paulo hoje. Retoma amanhã, 27 (de junho). Em seguida viaja e só volta no final do recesso. Pelas normas regimentais do STJ, em casos tais de urgência, o processo vai para a presidência. Penso que no STF o processamento deve ser o mesmo. Na presidência não seria mais viável?", questiona.
Os advogados estavam preocupados porque, ao analisar o pedido de HC preventivo, o ministro Grau tinha enviado o assunto ao Ministério Público Federal. "Vi esse despacho e fiquei preocupada. Será que as informações chegaram?", pergunta, em outra mensagem, a advogada Danielle Silbergleid Ninio, presa no dia 8 e solta por Mendes. Outro advogado, Henrique Neves, tranqüiliza a todos em um novo e-mail: "No STF, por sua vez, a questão ainda não está na apreciação da Iiminar, o que pode ser levado ao presidente no plantão".
Agora, a defesa de Dantas pretende argumentar que a ação autorizada pelo juiz De Sanctis, quando os dois prepostos do banqueiro tentaram subornar o delegado da PF, foi inválida por se tratar de "flagrante armado". A negociação para o pagamento de propina, ocorrida em restaurantes de São Paulo, foi também filmada pela PF e monitorada por escutas telefônicas. O juiz rebate a possibilidade porque, segundo ele, quem telefonou para o delegado foi Humberto Braz. Além disso, Chicaroni, preso desde o dia 8, confessou a tentativa de extorsão e afirmou, textualmente, ter atendido a um pedido de Dantas. Na casa do consultor, a PF encontrou quase 1,3 milhão de reais em dinheiro.
O magistrado não virou alvo à toa da tropa de advogados de Dantas, e não são poucas as razões para o dono do Opportunity querer vê-Io impedido de continuar à frente do processo. A principal delas diz respeito à movimentação de quase 2 bilhões de dólares no Opportunity Fund, usado pelo grupo de Dantas para internalizar ilegalmente recursos de investidores brasileiros em contas nas Ilhas Cayman. Pela legislação em vigor, o fundo só poderia ser acessado por investidores que não moram no Brasil. Um novo inquérito será aberto pela PF para investigar 84 nomes de pessoas físicas e jurídicas presentes na lista de investidores levantada pelo delegado Queiroz.
O levantamento só foi possível graças à quebra de sigilo do HD (disco rígido) do computador central do Opportunity, apreendido no Rio, em 2004, pela Operação Chacal, aliás, comandada pelo diretor-geral interino da PF, delegado Romero Menezes. O laudo da PF indica a utilização do fundo de Dantas para realizaçào de crime de evasão de divisas. Os brasileiros nomeados na lista deverão ser chamados para depor. Entre os listados, estão diversos funcionários e ex-funcionários do banqueiro travesti· dos de investidores, como Daniela Maluf Fei ffer, Elena Landau, Luiz Otavio West e Ricardo Kaufmann. Há também várias empresas e bancos, como BBA.
Outro inquérito também poderá ser aberto com base nas informações encontradas pelos federais atrás de uma parede falsa instalada, segundo os agentes, em um cômodo do apartamento do banqueiro em Ipanema, zona sul do Rio. Foram encontrados CDs com planilhas de supostos pagamentos de propina para autoridades, além de movimentações financeiras em contas ilegais fora do País.
Atrás da parede falsa estava a famosa planilha intitulada "Contribuições ao Clube", com registro total de pagamentos de 36 milhões de reais. Parte desse pagamento, 25 milhões de reais, foi destinada "para despesas da campanha de Letícia", em 2004. Outros dois, no valor de 5,5 milhões de reais, realizados em outubro de 2002 e janeiro de 2003, respectivamente, são destinados à "campanha de João à Presidência". Os advogados do dono do Opportunity negam a existência da parede falsa e acusam a PF de inventar a história. A PF ainda não sabe quem são "Letícia" e "João".
Os investigadores acharam ainda documentos que comprovam que a Kroll fazia arapongagem a mando do dono do Opportunity. Dantas é réu em quatro processos na 5a Vara Fede· ral de São Paulo por formação de quadrilha e espionagem internacional. O banqueiro sempre negou qualquer ligação na trama flagrada pela PF em 2002 e - que resultou na Operação Chacal, dois anos depois.
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