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Obsessão litorânea

Soa patético que, sendo a potência continental que somos, reneguemos a memória dos que lutaram para nos legar este grande país



Por Alon Feuerwerker

Um aspecto pouco tocado na polêmica sobre a demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol é o efeito explosivo que pode advir de dois mecanismos legais combinados: a Constituição Brasileira e a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, da qual o Brasil é signatário.

Objetivamente, a resultante dos dois vetores abre brechas para que populações originais reivindiquem legalmente a prerrogativa da secessão. Coisa que a Carta proíbe.

É um debate para o Supremo Tribunal Federal, que nesta semana suspendeu o julgamento do caso logo após o voto do relator. Mesmo sem decisão final, entretanto, a imprensa trabalhou duro para oferecer aos consumidores a maior massa possível de notícias e análises. O trabalho dos jornalistas, como sempre, foi duplo: analítico, por prover informações extensivamente, e sintético, por precisar comprimir cenários complexos em títulos e subtítulos de poucos caracteres.

Assim, vê-se aqui e ali que o conflito traduzir-se-ia, sinteticamente, como uma disputa entre índios e arrozeiros. Será? Em primeiro lugar, há índios dos dois lados. E não consta que a maioria da população de Roraima, que contesta a demarcação, seja de plantadores de arroz. Mas “índios x arrozeiros” é uma construção conveniente, do ângulo propagandístico: os silvícolas puros, amantes e cuidadores da natureza, contra os brancos maus que pretendem estender a exploração da agricultura a terras que deveriam permanecer virgens.

De onde será que vem esse viés meio romântico? Talvez das nossas origens. Nosso curriculum vitae exibe, para começar, três séculos de colônia de exploração, e não de povoamento. Nascemos e crescemos como um país continental que recusava a interiorização. Um povo concentrado na costa, vivendo do comércio e voltado para o que havia do outro lado do oceano. De lá para cá só o que mudaram foram as referências. Em vez de Lisboa, Paris e Londres, miramos agora para Nova York e Miami.

Impressiona a nossa obsessão litorânea, a aversão ideológica que persiste à ocupação do território, a sua exploração em benefício do país, a seu aproveitamente em favor de um desenvolvimento sustentado e sustentável para o conjunto da sociedade. Professores de história tratam os bandeirantes como criminosos. E a construção do Brasil moderno é descrita carregada de sentimentos de culpa. Há, sim, culpas justas, que precisamos mesmo expiar, como por exemplo a escravidão e o latifúndio. Mas soa patético que, sendo a potência continental que somos, reneguemos a memória dos que lutaram e trabalharam para nos legar este grande país.

Enquanto o presidente da República usa nosso peso específico para reivindicar uma cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU, seu governo opera com parâmetros que criminalizam as fundações do Brasil contemporâneo. No terreno da luta de idéias, chega a ser ingênuo. Basta assistir a Gangues de Nova York para comprovar que a construção daquela magnífica e civilizada metrópole não foi exatamente um passeio dominical de shopping center. E não consta que os americanos, que pretendem nos impor lições preservacionistas e humanistas, estejam planejando devolver Manhattan aos índios que lhes venderam a ilha a preço de banana no século 17.

O leitor que acompanha esta coluna sabe que o assunto aqui é recorrente. E é bom que esteja sendo discutido para valer. Nesse aspecto, a batalha em torno de Raposa Serra do Sol já foi vencida em parte pelo Brasil. Sem muito barulho, o presidente da República assinou semanas atrás um decreto para afirmar e intensificar a presença militar brasileira em áreas de fronteira, inclusive em terras indígenas. É um primeiro passo. O ideal seria que fosse acompanhado por uma política de expansão populacional baseada na agricultura familiar, mas nada impede que, no futuro, governos menos manietados pelas pressões internacionais decidam dar tal passo.

A realidade do século 21, com a exigência absoluta de respeito aos direitos humanos, permitirá que isso possa acontecer de modo radicalmente distinto do que se deu no passado. Assim, a inevitável absorção das populações indígenas pela sociedade brasileira poderá dar-se com o pleno respeito a suas culturas, sem entretanto colocar barreiras a que, como os demais brasileiros, os índios possam se beneficiar dos avanços da humanidade em todos os campos.
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