Presidente do STF acolheu ação apresentada por Raquel Dodge. Magistrada afirmou na decisão provisória que 'indulto não é prêmio ao criminoso nem tolerância ao crime'.
Por Valdo Cruz e Bernardo Caram | GloboNews e G1, Brasília
Responsável pelo plantão do Judiciário durante o recesso, a presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministra Cármen Lúcia, suspendeu nesta quinta-feira (28) os trechos do decreto editado na semana passada pelo presidente Michel Temer que abrandavam as regras para concessão do indulto de Natal.
A presidente do Supremo, ministra Cármen Lúcia (dir), suspendeu parte do decreto presidencial a pedido da chefe da PGR (Foto: Carlos Moura/SCO/STF) |
A magistrada concedeu liminar (decisão provisória) acolhendo os questionamentos da procuradora-geral da República, Raquel Dodge, que, nesta quarta (27), protocolou uma ação na Suprema Corte para suspender os efeitos do decreto natalino que reduziu o tempo de cumprimento das penas a condenados por crimes cometidos sem violência ou grave ameaça.
LEIA A ÍNTEGRA DA DECISÃO
No despacho, a ministra do Supremo ressaltou que a decisão de dar a liminar foi tomada em razão do caráter de urgência do assunto. Segundo ela, ao final do recesso do Judiciário, em fevereiro, o relator do caso, ministro Luís Roberto Barroso, ou o plenário da Corte irão voltar a analisar o pedido da Procuradoria Geral da República (PGR).
"Pelo exposto, pela qualificada urgência e neste juízo provisório, próprio das medidas cautelares, defiro a medida cautelar (art. 10 da Lei n. 9.868/1999), para suspender os efeitos do inc. I do art. 1º; do inc. I do § 1º do art. 2º, e dos arts. 8º, 10 e 11 do Decreto n. 9.246, de 21.12.2017, até o competente exame a ser levado a efeito pelo Relator, Ministro Roberto Barroso ou pelo Plenário deste Supremo Tribunal, na forma da legislação vigente", argumentou a presidente do STF para conceder a liminar.
Na avaliação de Cármen Lúcia, os dispositivos do decreto presidencial “parecem substituir a norma penal” que garante a eficácia do processo e geram uma invasão, pelo Poder Executivo, de competências dos poderes Legislativo e Judiciário.
Segundo a magistrada, as regras estabelecidas pelo presidente da República para conceder o indulto fortalecem a sensação de "impunidade", especialmente em relação aos "crimes de colarinho branco".
Veja os pontos do indulto suspensos pela liminar do STF:
- Diminuição do tempo exigido de cumprimento da pena para o condenado receber o indulto (de 1/4 para 1/5 da pena)
- Perdão do pagamento de multas relacionadas aos crimes pelos quais os presos foram condenados
- Concessão do benefício mesmo quando ainda há recursos em andamento em instâncias judiciais
- Possibilidade de indulto a pessoas que estejam respondendo a outro processo
Indulto de Natal
O indulto natalino é um perdão de pena e costuma ser concedido todos os anos em período próximo ao Natal. Atribuição do presidente da República, esse benefício não trata das saídas temporárias de presos, nas quais os detentos precisam retornar à prisão.
No ano passado, Temer já havia flexibilizado um pouco as regras de concessão do benefício, determinando que poderiam ser beneficiados pelo perdão pessoas condenadas a no máximo 12 anos e que, até 25 de dezembro de 2016, tivessem cumprido um quarto da pena, desde que não fossem reincidentes.
O indulto deste ano abranda ainda mais as normas de concessão do benefício, ao não definir um período máximo de condenação para que o detento obtenha o perdão presidencial.
Além disso, o decreto do presidente reduziu para um quinto o tempo de cumprimento da pena para presos não reincidentes. A medida contempla quem cumprir esses requisitos até 25 de dezembro de 2017.
Ação de Dodge
Na ação judicial apresentada ao Supremo, a procuradora-geral da República argumentou que o decreto de Temer viola os princípios da separação de poderes, da individualização da pena e da proibição, prevista na Constituição, de o Poder Executivo legislar sobre direito penal.
"[Se mantido o decreto] A Constituição restará desprestigiada, a sociedade restará descrente em suas instituições e o infrator, o transgressor da norma penal, será o único beneficiado", escreveu a chefe do Ministério Público em trecho da ação.
"O chefe do Poder Executivo não tem poder ilimitado de conceder indulto. Se o tivesse, aniquilaria as condenações criminais, subordinaria o Poder Judiciário, restabeleceria o arbítrio e extinguiria os mais basilares princípios que constituem a República Constitucional Brasileira" (Raquel Dodge)
Na liminar concedida nesta quinta, a presidente do STF ponderou que o indulto é um instrumento que beneficia aquele que, tendo cumprido parte do débito com a sociedade, obtenha o reconhecimento de que seu erro foi assumido e punido, sendo dada nova chance para superar esse erro.
“Indulto não é nem pode ser instrumento de impunidade”, observou a ministra do Supremo na decisão.
“Indulto não é prêmio ao criminoso nem tolerância ao crime. Nem pode ser ato de benemerência ou complacência com o delito, mas perdão ao que, tendo-o praticado e por ele respondido em parte, pode voltar a reconciliar-se com a ordem jurídica posta” (Cármen Lúcia)
Perdão de multas
Outro trecho do decreto questionado por Raquel Dodge é o que prevê a possibilidade de livrar o detento beneficiado com o indulto do pagamento de multas relacionadas aos crimes cometidos.
Para a procuradora-geral, o perdão de multas seria uma forma de renúncia de receita por parte do poder público.
Na ação, Raquel Dodge destaca que o decreto natalino deste ano do presidente da República foi classificado como o "mais generoso" entre as normas editadas nas últimas duas décadas e afirma que, se mantido, será causa de impunidade de crimes graves como os apurados pela Operação Lava Jato e outras operações de combate à “corrupção sistêmica”.
Como exemplo, a procuradora-geral da República afirma que, com base no decreto, uma pessoa condenada a 8 anos e 1 mês de prisão não ficaria sequer um ano presa.
Em relação ao perdão das multas, a presidente do Supremo ressaltou na decisão liminar que suspendeu os efeitos de parte do decreto que os valores cobrados dos condenados não provocam “situação de desumanidade” nem são dignos de “benignidade”, por serem parte de uma atuação judicial que beneficia a sociedade.
“Este Supremo Tribunal firmou jurisprudência no sentido de que, para que o condenado possa obter benefício carcerário, incluído a progressão de regime, por exemplo, faz-se imprescindível o adimplemento da pena de multa, salvo motivo justificado”, destacou.
Sem recuo
Após a edição do decreto natalino, o coordenador da força-tarefa da Operação Lava Jato em Curitiba, procurador Deltan Dallagnol, usou sua conta no Twitter para criticar o ato de Michel Temer. Segundo o procurador, o indulto deste ano se trata de um “feirão de Natal para corruptos”.
“Pratique corrupção e arque com só 20% das consequências – isso quando pagar pelo crime, porque a regra é a impunidade”, escreveu.
Diante da polêmica gerada pela edição do indulto natalino, o ministro da Justiça, Torquato Jardim, afirmou nesta quinta à colunista do G1 Andréia Sadi que o governo não vai recuar em relação ao decreto que mudou os critérios para a concessão do indulto de Natal.
"Não tem recuo. Governo mantém sua posição. Não tem motivo. Agora, é aguardar a decisão da ministra Cármen Lúcia [presidente do Supremo Tribunal Federal]", afirmou o ministro ao Blog.
Em resposta às críticas disparadas contra Temer em razão do indulto natalino, o ministro da Justiça escreveu um artigo defendendo a iniciativa do presidente da República. O texto de Torquato Jardim foi publicado nesta quinta no site do jornal "O Globo".
No artigo, o titular da Justiça disse que considerar que o decreto beneficiará investigados, denunciados ou condenados pela Operação Lava Jato "configura ignorância ou má-fé".
"Não há que se confundir Lava Jato com indulto. Não há qualquer relação de causa e efeito. Lava Jato é uma série de processos administrativos ou judiciais de investigação ora em curso ou na Polícia Federal ou no Ministério Público Federal. Processos sem conclusão, donde sem sentença judicial. Logo, processo administrativo da Lava Jato não é objeto de indulto. O indulto pressupõe decisão judicial – ainda que não definitiva", escreveu o ministro em trecho do artigo.
O que disse o governo
Pasta encarregada da defesa jurídica do governo federal, a Advocacia-Geral da União (AGU) informou que ainda não foi notificada pelo STF sobre a liminar de Cármen Lúcia e que vai se manifestar dentro do prazo processual.
Já o ministro da Justiça, Torquato Jardim, afirmou à colunista do G1 Andréia Sadi que Temer vai estudar como "compensar" os condenados que ficaram de fora do indulto natalino com a decisão da presidente do Supremo.
Torquato também disse à TV Globo que o presidente avalia editar novo decreto com regras para concessão do indulto natalino.
Dodge
Após Cármen Lúcia suspender os trechos polêmicos do decreto presidencial, a procuradora-geral da República divulgou uma nota, por meio da assessoria da PGR, na qual elogia a decisão da presidente do STF.
No comunicado, Raquel Dodge disse que, ao conceder a limitar, a Suprema Corte impediu, entre outros pontos, a violação de princípios como o da separação dos poderes e da individualização da pena.
“Nas democracias, é muito importante defender a Constituição. Isso é um dever do Ministério Público, e é o que foi feito nesta ação judicial. O indulto, embora constitucionalmente previsto, só é válido se estiver de acordo com a finalidade para a qual foi juridicamente estabelecido. A ministra Cármen Lúcia, em sua decisão, agiu como guardiã da Carta constitucional, fortalecendo a compreensão de que fora de sua finalidade jurídica humanitária, o indulto não pode ser concedido”, escreveu Raquel Dodge.
Randolfe
Nesta quinta, um dia depois de Raquel Dodge ter ingressado com ação no STF questionando o indulto natalino, o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) anunciou ter ajuizado uma ação popular na 3ª Vara Federal de Brasília pedindo a anulação do decreto de Temer.
A assessoria de Randolfe informou que, na ação, o parlamentar do Amapá comparou o indulto natalino do presidente da República de um “insulto natalino”, que promove uma “black Friday do crime de colarinho branco, promovendo descontos de até 84% nas penas de poderosos”.
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