Ali Kamel
Nada entendo de aviões. Escrevo na condição de passageiro freqüente deste meio de transporte.
Penso na dor das famílias e creio que a tragédia mostrou que todos estamos há tempos sendo lesados.
Deve existir algum código em defesa dos passageiros, mas, se existe, ou ele não está sendo posto em prática ou deve ser emendado urgentemente. A TAM informou que o manual da Airbus diz que o modelo A320 pode voar até dez dias com defeito no reversor da turbina: basta travá-lo. Se isso é fato, creio que temos de ouvir do comandante, além das boas-vindas, um aviso mais ou menos assim: "Senhores passageiros, aqui quem fala é o comandante. Antes de iniciar a nossa viagem, gostaria de informá-los de que nosso avião está com o sistema auxiliar de frenagem, o chamado reversor das turbinas, quebrado.
Não se assustem: o manual do fabricante nos permite viajar assim por até dez dias antes de consertá-lo, e ainda faltam seis. O pouso acontecerá sem problemas, desde que não haja chuva muito forte. Boa viagem".
Como não pagamos caro para voar em aeronaves com defeitos, como o sistema de meteorologia não é confiável e um pé d"água na hora do pouso é sempre possível, muitos desceriam do avião. Eu desceria. Desde o desastre da TAM em 1996, sei o que é um reversor, e não me arriscaria a voar, sabendo que esse dispositivo está com defeito. A TAM, em anúncios publicitários, vem dizendo que é transparente: afirma que, na entrevista após o desastre, o vice-presidente técnico da empresa, Rui Amparo, admitiu o defeito no reversor. Uma reportagem da "Folha de S.Paulo" rememorou, dias depois, a entrevista: "Amparo, ao ser questionado se poderia ter ocorrido problema semelhante ao do acidente de 1996, afirmou: "O reversor direito estava travado, em condições previstas dentro das normas desse tipo de avião, e que não coloca qualquer obstáculo ao pouso previsto em Congonhas"". Ora, qualquer um ali traduziria assim a explicação: o reversor não tinha problemas. Se a TAM acha que isso é transparência, fico imaginando o que, para ela, seja omitir fatos. O Brasil só tomou conhecimento do defeito depois do furo do "Jornal Nacional".
Da mesma forma, se houvesse respeito pelos direitos dos passageiros, nós também teríamos sido informados de que a pista principal de Congonhas foi liberada sem que o governo ainda tivesse tido acesso ao laudo do IPT. Não importa que este laudo, divulgado apenas após o desastre, diga que a pista é segura, acima dos padrões internacionais. Importa que a pista foi liberada antes de o laudo estar pronto. O IPT, porém, terá de refazê-lo, após os fatos que só agora vêm emergindo. Na véspera do desastre, dois vôos da TAM, um deles usando o Airbus que viria a se acidentar, quase não conseguiram parar (no mesmo dia, um avião da Pantanal aquaplanou na pista, sendo arremessado contra um gramado lateral). Gravações atestam que, naquela segunda-feira, a torre, como se estivesse repetindo um mantra, dizia a todos os pilotos que se aproximavam: "Atenção, pista escorregadia". Eles não fizeram isso à toa: deram o aviso porque eles próprios foram alertados pelos pilotos. Em apenas meia hora, foram 14 avisos a 14 aviões. Eu me pergunto: será normal que uma pista, embaixo de chuva, fique escorregadia e permaneça aberta? Eu aceito que uma pista molhada continue aberta se a lâmina d"água for inferior aos padrões internacionais. Mas se a pista, mesmo sem uma lâmina d"água expressiva, continua escorregadia, a ponto de levar os controladores a dar o sinal, ela deve continuar aberta? Eu não sei. Mas, como passageiro, eu gostaria de ser avisado, antes do embarque, de que o avião em que eu viajo vai pousar numa pista que controladores e pilotos descrevem como escorregadia.
No dia do desastre, um piloto da Gol avisou a torre de que a pista estava escorregadia. A Infraero fez a medição e se limitou a dizer: "Inexistência de lâmina ou poça d"água". Os controladores, que tinham fechado a pista para a medição, perguntaram: "Isso quer dizer que a pista pode ser liberada?" A resposta foi uma repetição: "Inexistência de lâmina e poça d""água". Isso demonstra apenas que, nos dias de hoje, ninguém quer chamar a si responsabilidades. Não é para menos: se fazem tudo como manda o figurino, os controladores correm o risco de serem acusados de fazer uma "operação padrão", que leva ao caos aéreo. Se são mais flexíveis, e evitam problemas de fluxo e atraso, arriscam-se a levar a pecha de homicidas. Este é um país estranho mesmo, em que a desordem reina em tal nível que sequer fazer greve é necessário: para causar tumulto, basta seguir o padrão. Ora, seguir o padrão deve ser sempre a praxe, nunca a exceção. Se o padrão está errado (e não está), deve ser mudado. O que não se pode é deixar de segui-lo. Afinal, ele é o padrão. Em tempo: a pista acabou liberada após 13 minutos. À noite, aconteceu a tragédia.
A mesma sensação de que nossos direitos de passageiros foram lesados me veio quando o governo anunciou as modificações em Congonhas, após o desastre, diminuindo o número de vôos, proibindo que ali sejam feitas escalas e reduzindo a aviação executiva. Isso quer dizer que, na opinião do governo, tais medidas vão ajudar a impedir novos desastres. Se é assim, durante muito tempo voei para um aeroporto cujo administrador (o governo) sabia que estava sobrecarregado, gerando risco para nós, passageiros.
Eu não tenho opções: meu trabalho exige que eu voe com freqüência. Mas sonho com o dia em que meus direitos básicos sejam respeitados pelas companhias aéreas e pelos governos.
ALI KAMEL é jornalista.
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