Tributo arrecadado deixa de ser usado para sua finalidade original e é destinado para fazer ‘superávit primário’
Sérgio Gobetti, BRASÍLIA
Retenções bilionárias de receitas vinculadas à educação, saúde, pesquisas científicas, investimentos em infra-estrutura e aeroportos e desviadas pelo governo para o “superávit primário” estão se acumulando nos cofres federais, deixando de ser usadas para sua finalidade original e para o pagamento de dívidas. Levantamento feito pelo Estado mostra que as receitas do governo federal disponíveis para quitar dívidas somam cerca de R$ 250 bilhões. E pelo menos um terço disso é de fundos especiais, constituídos, originalmente, para outros fins.
De royalties do petróleo, por exemplo, o Tesouro acumula no caixa nada menos que R$ 24,7 bilhões. Legalmente, essa receita pertence a quatro Ministérios - Ciência e Tecnologia, Marinha, Minas e Energia e Meio Ambiente - e deveria ser aplicada no desenvolvimento de novas tecnologias, fontes de energia e projetos voltados à recuperação dos danos causados pela atividade petrolífera. Na prática, entretanto, esse é o recurso preferencial escolhido pela equipe econômica para contingenciar. E pouco dele realmente chega ao seu destino natural.
A lógica de fazer superávit com receitas vinculadas é que, mesmo não usando esse dinheiro para pagar juros e reduzir a dívida bruta, o governo desconta esse valor acumulado no cálculo da dívida líquida. E o que interessa para o mercado financeiro, segundo especialistas, é que o governo reduza sua dívida líquida, não a bruta. Ou seja, que mantenha a despesa governamental baixa e economize receitas, mas continue emitindo títulos públicos em volume elevado para atender à demanda dos bancos por esses papéis.
E é possível que, se as receitas não fossem vinculadas, o governo não conseguiria fazer tanto superávit. Isso porque muitos impostos - e tributos travestidos de fundos - só foram criados porque tinham embutida uma promessa de aplicação dos recursos em determinadas finalidades “sociais”. Foi assim com a CPMF, o chamado imposto do cheque, que ajudaria a Saúde, e com a Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (Cide, o imposto sobre combustíveis), para investir em infra-estrutura e energia. Promessa renovada agora com a Contribuição Social da Saúde (CSS) - a nova CPMF que o governo quer criar para, diz, financiar a Saúde.
A criação desses tributos não proporcionou um aumento de gastos com as áreas pretensamente beneficiadas, mas sim um reforço do superávit primário. Paradoxalmente, portanto, esse tipo de vinculação contribuiu para o ajuste fiscal.
A Cide, por exemplo, criada para financiar projetos de infra-estrutura e energia, continua servindo para engordar o superávit primário, mesmo após vários alertas do Tribunal de Contas da União (TCU).
Pelo dados do Sistema Integrado de Administração Financeira (Siafi), o governo retém R$ 8,3 bilhões da Cide parados no seu caixa, o que equivale a mais de um ano de arrecadação do tributo.
As disponibilidades são tão amplas que incluem até mesmo recursos da CPMF, a contribuição cobrada sobre movimentações financeiras, extinta no início de 2008. Seis meses depois de deixar de existir, a CPMF sobrevive nas contas do governo, com R$ 1,4 bilhão - dinheiro que teoricamente seria destinado à saúde e à previdência social.
A lista de vinculações é tão ampla que inclui fundos que pouca gente sabe que existem, como os da Marinha Mercante e de Desenvolvimento do Ensino Profissional Marítimo, que possuem R$ 3 bilhões atualmente. Esses fundos são constituídos com tributos pagos pelas empresas do setor para incentivar a atividade econômica e o ensino no setor naval, mas pouco ou quase nada é efetivamente aplicado de acordo com a lei.
Situação parecida é enfrentada pelo Fundo Aeroviário, que retém contribuições das empresas do setor aéreo para ser reinvestido nos aeroportos. O saldo inutilizado desse fundo já ultrapassa os R$ 4,9 bilhões. As receitas de concessão recolhidas pelas agências reguladoras e as que são destinadas ao Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (Fust) têm o mesmo destino: o cofre. No caso do Fust, instituído em 2000, as empresas de telecomunicações contribuem com 1% de suas receitas para financiar a aquisição de computadores nas escolas. A maior parte do dinheiro, entretanto, acaba retido pelo “superávit” no caixa do governo.
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