atentado
Claudio Fontelles
Comissão da Verdade
Dilma Rousseff
ditadura
Gilson Dipp
investigação
José Genoino
juiz
Lei da Anistia
ONU
Paulo Sérgio Pinheiro
Riocentro
Rosa Cardoso
Luta pela memória da ditadura está em perigo
Conspiração sabotagem e estrelismo atrapalham as apurações da comissão da verdade
Josie Jeronimo - IstoÉ
LONGE DE UMA RESPOSTA
O atentado à bomba no Rio-Centro, em 1981, ato terrorista dos militares contra a democratização, é um dos vários episódios à espera de investigação.
Josie Jeronimo - IstoÉ
LONGE DE UMA RESPOSTA
O atentado à bomba no Rio-Centro, em 1981, ato terrorista dos militares contra a democratização, é um dos vários episódios à espera de investigação.
Nascida há 14 meses como um dos mais nobres projetos do governo Dilma Rousseff, de uns tempos para cá a Comissão Nacional da Verdade transformou-se num ambiente de disputas internas, conspirações permanentes e mesmo atos de sabotagem entre seus membros. Ciente disso, a presidenta Dilma decidiu intervir na comissão e planeja convocar o colegiado de coordenadores para uma conversa reservada, em que pretende cobrar explicações e discutir caminhos, na esperança de salvar uma ideia que custou meses de negociação com familiares de desaparecidos, militares aposentados, ministros e forças políticas de várias famílias ideológicas.
Sempre se soube que a investigação sobre a memória do regime militar seria alvo de críticas por parte de generais de pijama e de cobranças dos familiares de vítimas e iria mobilizar atenções no País inteiro. Estava claro também que os membros da comissão, escolhidos em maio de 2012, teriam de se empenhar, acima de tudo, em cumprir a obrigação de conhecer cada crime, cada violência, em todos os detalhes. Episódios terríveis da história do País, como o atentado à bomba no Rio-Centro, o mais ambicioso ato de terrorismo militar contra a democratização, até hoje aguardam explicações completas e definitivas sobre seus autores e as responsabilidades da cadeia de comando.
O trabalho de uma Comissão da Verdade, em qualquer parte do mundo, é assim mesmo.
Consiste em pisar em terreno áspero, ouvir os contrários, dar voz a quem nunca teve – e depois construir, palavra por palavra, uma narrativa que não foi escrita. A questão é que era preciso encontrar um método de trabalho coerente para dar conta de tarefa tão nobre e delicada – e os membros da comissão nunca se entenderam a respeito disso.
Pouco a pouco, aquela atividade, que deveria buscar a consulta externa, o depoimento jamais obtido e o episódio nunca esclarecido, transformou-se numa disputa típica de posições, uma pequena guerra de prestígio e força – em reuniões e embates a portas fechadas. É possível traduzir o exíguo trabalho externo da comissão por sua contabilidade. Com orçamento de R$ 10 milhões para tocar o serviço, até agora ela gastou uma modesta quantia de R$ 200 mil.
Vários fatores ajudam a explicar essa situação. Um deles envolve a forma de organização. Em vez de estimular acordos e pactos construtivos, a ideia de estabelecer um sistema de coordenação por rodízio, através do qual cada membro da coordenação assumiria o comando dos trabalhos por três meses, logo passando o bastão para um novo sucessor, só contribuiu para acirrar disputas, contradições e conflitos. Inicialmente, a indicação do antigo corregedor do Conselho Nacional de Justiça, o juiz Gilson Dipp, para integrar a comissão, trazia um propósito positivo. Esperava-se que, com sua liderança e capacidade de composição, Dipp pudesse garantir uma certa ordem aos trabalhos. Mas, primeiro coordenador, Dipp adoeceu e teve de licenciar-se. Acabou substituído por Claudio Fontelles, procurador-geral da República entre 2003 e 2005, que acabaria acumulando dois mandatos consecutivos. Primeiro, como reserva de Dipp e, depois, como coordenador pleno. Quando Dipp recuperou a saúde, preferiu pedir para ir embora, deixando uma vaga em aberto, que até agora não foi preenchida. Com uma postura diferente da do antecessor, Fontelles colecionou brigas internas e acabou pedindo demissão. Saiu batendo a porta. Mas admite retornar, sob determinadas condições.
O conflito da Comissão da Verdade já havia produzido vários episódios desgastantes que lembram guerras de poder numa firma, num partido político ou num sindicato, mas chegou a um ponto máximo no final de maio.
Sempre se soube que a investigação sobre a memória do regime militar seria alvo de críticas por parte de generais de pijama e de cobranças dos familiares de vítimas e iria mobilizar atenções no País inteiro. Estava claro também que os membros da comissão, escolhidos em maio de 2012, teriam de se empenhar, acima de tudo, em cumprir a obrigação de conhecer cada crime, cada violência, em todos os detalhes. Episódios terríveis da história do País, como o atentado à bomba no Rio-Centro, o mais ambicioso ato de terrorismo militar contra a democratização, até hoje aguardam explicações completas e definitivas sobre seus autores e as responsabilidades da cadeia de comando.
O trabalho de uma Comissão da Verdade, em qualquer parte do mundo, é assim mesmo.
Consiste em pisar em terreno áspero, ouvir os contrários, dar voz a quem nunca teve – e depois construir, palavra por palavra, uma narrativa que não foi escrita. A questão é que era preciso encontrar um método de trabalho coerente para dar conta de tarefa tão nobre e delicada – e os membros da comissão nunca se entenderam a respeito disso.
Pouco a pouco, aquela atividade, que deveria buscar a consulta externa, o depoimento jamais obtido e o episódio nunca esclarecido, transformou-se numa disputa típica de posições, uma pequena guerra de prestígio e força – em reuniões e embates a portas fechadas. É possível traduzir o exíguo trabalho externo da comissão por sua contabilidade. Com orçamento de R$ 10 milhões para tocar o serviço, até agora ela gastou uma modesta quantia de R$ 200 mil.
Vários fatores ajudam a explicar essa situação. Um deles envolve a forma de organização. Em vez de estimular acordos e pactos construtivos, a ideia de estabelecer um sistema de coordenação por rodízio, através do qual cada membro da coordenação assumiria o comando dos trabalhos por três meses, logo passando o bastão para um novo sucessor, só contribuiu para acirrar disputas, contradições e conflitos. Inicialmente, a indicação do antigo corregedor do Conselho Nacional de Justiça, o juiz Gilson Dipp, para integrar a comissão, trazia um propósito positivo. Esperava-se que, com sua liderança e capacidade de composição, Dipp pudesse garantir uma certa ordem aos trabalhos. Mas, primeiro coordenador, Dipp adoeceu e teve de licenciar-se. Acabou substituído por Claudio Fontelles, procurador-geral da República entre 2003 e 2005, que acabaria acumulando dois mandatos consecutivos. Primeiro, como reserva de Dipp e, depois, como coordenador pleno. Quando Dipp recuperou a saúde, preferiu pedir para ir embora, deixando uma vaga em aberto, que até agora não foi preenchida. Com uma postura diferente da do antecessor, Fontelles colecionou brigas internas e acabou pedindo demissão. Saiu batendo a porta. Mas admite retornar, sob determinadas condições.
O conflito da Comissão da Verdade já havia produzido vários episódios desgastantes que lembram guerras de poder numa firma, num partido político ou num sindicato, mas chegou a um ponto máximo no final de maio.
Empossada na coordenação, a advogada Rosa Cardoso, que defendeu Dilma e o deputado José Genoino durante o regime militar, enviou uma mensagem à própria presidenta da República. Rosa queria, simplesmente, que a presidenta demitisse três de seus adversários internos da Comissão – o advogado Paulo Sérgio Pinheiro, tarimbado integrante de missões de direitos humanos da ONU, a psicanalista Maria Rita Kehl e o advogado e escritor José Paulo Cavalcanti. A presidente respondeu através do assessor Giles Azevedo, que telefonou a Pinheiro e lhe disse que Dilma estava satisfeita com os trabalhos e com a atuação de seus membros. Mas a tensão não terminou. Em nova mensagem endereçada à presidenta, ainda sem resposta, Rosa solicitou a Dilma que fizesse uma opção definitiva, escolhendo quem deve ficar e quem deve sair.
RODÍZIO IMPRODUTIVO
O juiz Gilson Dipp, primeiro comandante dos trabalhos que se perderam com a troca de direção
RODÍZIO IMPRODUTIVO
O juiz Gilson Dipp, primeiro comandante dos trabalhos que se perderam com a troca de direção
Até hoje é mais fácil relatar as brigas entre os integrantes da comissão do que oferecer uma explicação racional para tantas divergências. A composição da coordenação mostrava um esforço para agrupar personalidades que, por vários caminhos, expressam o universo democrático brasileiro. Há coordenadores com sólida biografia tucana, mas também petistas e pelo menos uma voz que simpatiza com o Movimento Sem-Terra. Mas eles estão separados por uma divergência que não tem relação direta com suas linhagens políticas. Resumindo de forma simples um debate mais complicado, pode-se dizer que Rosa e Fontelles pretendem transformar os trabalhos da comissão numa etapa preparatória para uma revisão da Lei da Anistia que permita colocar os acusados por tortura e mortes no banco dos réus.
Os outros, que têm como maior expoente Pinheiro, consideram que a comissão deve contar uma história do período, a mais completa que já foi escrita, e deixar a decisão para o conjunto da sociedade. Se a Lei de Anistia deve ser revista, esse não é um problema da comissão, raciocinam.
Como era de se imaginar, a cada visão corresponde um método de trabalho. Quando assumiu a coordenação, Pinheiro procurou agir de acordo com seu ponto de vista. Preferiu a consulta a arquivos, a coleta de depoimentos reservados, quando esse era o desejo da testemunha. Rosa e Fontelles, que acumularam um período mais longo na coordenação dos trabalhos, também agiram, mas pelo outro lado.
Fiel à ideia de que seria conveniente criar "comoção" e exercer um "papel pedagógico" junto à população, Fontelles tentou divulgar denúncias de grande impacto. Como ideia, era uma solução tentadora. Mas não se possuía matéria-prima correspondente a tanta ambição.
Durante uma audiência pública com o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, comandante do DOI-Codi paulista e um dos símbolos do período, Fontelles criou um impacto apenas passageiro. Disse que trazia um documento inédito sobre a morte de 50 presos ocorrida na repartição militar sob o comando de Ustra. O documento, além de não ser inédito (havia sido reproduzido pelo próprio Ustra em seu livro), era repleto de imprecisões. Em outro momento, Fontelles anunciou em entrevista que possuía revelações relevantes sobre a morte do deputado Rubens Paiva, sequestrado em casa, na frente da mulher e dos filhos. Nada havia, porém, que não fosse do conhecimento de quem pesquisa o assunto.
A Comissão da Verdade tentou queimar etapas e foi assim que acabou chegando a essa encruzilhada complexa. Antes de mergulhar nos arquivos disponíveis – que são mais numerosos e férteis do que se supõe –, seus integrantes ingressaram no debate posterior, sobre o destino de eventuais descobertas. Elas podem ficar nos livros ou podem mudar a história. Mas esse é um debate posterior, para o País resolver. A Comissão da Verdade deve ao Brasil um pedaço de sua história que jamais foi contado. Em posição intelectualmente privilegiada, seus integrantes dispõem da chance única de ouvir testemunhas, confrontar versões e restabelecer o fio interrompido de um passado que convém conhecer para que nunca seja repetido. Basta isso e estará muito bem-feito.
Os outros, que têm como maior expoente Pinheiro, consideram que a comissão deve contar uma história do período, a mais completa que já foi escrita, e deixar a decisão para o conjunto da sociedade. Se a Lei de Anistia deve ser revista, esse não é um problema da comissão, raciocinam.
Como era de se imaginar, a cada visão corresponde um método de trabalho. Quando assumiu a coordenação, Pinheiro procurou agir de acordo com seu ponto de vista. Preferiu a consulta a arquivos, a coleta de depoimentos reservados, quando esse era o desejo da testemunha. Rosa e Fontelles, que acumularam um período mais longo na coordenação dos trabalhos, também agiram, mas pelo outro lado.
Fiel à ideia de que seria conveniente criar "comoção" e exercer um "papel pedagógico" junto à população, Fontelles tentou divulgar denúncias de grande impacto. Como ideia, era uma solução tentadora. Mas não se possuía matéria-prima correspondente a tanta ambição.
Durante uma audiência pública com o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, comandante do DOI-Codi paulista e um dos símbolos do período, Fontelles criou um impacto apenas passageiro. Disse que trazia um documento inédito sobre a morte de 50 presos ocorrida na repartição militar sob o comando de Ustra. O documento, além de não ser inédito (havia sido reproduzido pelo próprio Ustra em seu livro), era repleto de imprecisões. Em outro momento, Fontelles anunciou em entrevista que possuía revelações relevantes sobre a morte do deputado Rubens Paiva, sequestrado em casa, na frente da mulher e dos filhos. Nada havia, porém, que não fosse do conhecimento de quem pesquisa o assunto.
A Comissão da Verdade tentou queimar etapas e foi assim que acabou chegando a essa encruzilhada complexa. Antes de mergulhar nos arquivos disponíveis – que são mais numerosos e férteis do que se supõe –, seus integrantes ingressaram no debate posterior, sobre o destino de eventuais descobertas. Elas podem ficar nos livros ou podem mudar a história. Mas esse é um debate posterior, para o País resolver. A Comissão da Verdade deve ao Brasil um pedaço de sua história que jamais foi contado. Em posição intelectualmente privilegiada, seus integrantes dispõem da chance única de ouvir testemunhas, confrontar versões e restabelecer o fio interrompido de um passado que convém conhecer para que nunca seja repetido. Basta isso e estará muito bem-feito.
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