Falha no sistema de distribuição atinge pelo menos 11 estados e deixa 6 milhões de pessoas sem energia. Com escassez de chuvas e investimentos insuficientes, a possibilidade de faltar luz durante a Copa do Mundo é cada vez maior
SÍLVIO RIBAS | CORREIO BRAZILIENSE
As elevadas temperaturas registradas em janeiro combinadas à maior estiagem para o mês em 60 anos expuseram ontem as graves deficiências do sistema elétrico nacional e ressuscitaram o pior pesadelo da presidente Dilma Rousseff: a possibilidade de o país anunciar um racionamento de energia no ano que ela tentará a reeleição. Apenas um dia depois de o ministro de Minas e Energia, Edison Lobão, afirmar que o risco de desabastecimento de eletricidade no Brasil era “zero”, uma simples falha numa linha de transmissão que liga o Norte ao Sudeste provocou, no início da tarde de ontem, um apagão — o décimo do atual governo —, que deixou 6 milhões de pessoas sem luz em 11 estados das regiões Norte, Sudeste, Sul e Centro-Oeste.
Na avaliação de especialistas, o modelo interligado, implantado por Dilma quando ela foi ministra de Minas de Energia, é frágil e está sofrendo com a falta de investimento adequado e de planejamento.
Para eles, se a estiagem que assola o país continuar por mais dois meses, há o risco de a população conviver com sucessivos apagões, inclusive durante a Copa do Mundo. No entender dos analistas, ontem, houve um descompasso na distribuição das cargas entre o Norte e o Sul provocado pelo aumento do consumo. Desde 10 de janeiro, a demanda já bateu seis recordes, fruto do excesso de calor. O governo, no entanto, nega que o apagão tenha ocorrido por excesso de demanda.
Se não chover em níveis adequados nas próximas semanas, e o consumo continuar crescente, nas horas mais quentes do dia poderá haver um colapso no Sistema Interligado Nacional (SIN). A exemplo da série de apagões de grandes proporções que vêm atingindo o país desde 2008, os especialistas enxergam crescente fragilidade do setor energético, já que projetos importantes, que ampliariam a oferta de energia, como a Usina de Belo Monte, estão atrasados por má execução. O Plano Decenal de Energia, do próprio governo, prevê a necessidade de investimento médio anual de R$ 26 bilhões até 2022, mas esse valor tem ficado entre R$ 6 bilhões e R$ 10 bilhões por ano.
Desculpas de sempre
Como era de se esperar, para não sacramentar o vexame do ministro de Minas e Energia, o governo tentou minimizar a extensão do primeiro grande blecaute de 2014 e procurou desvincular sua ocorrência do aumento do consumo combinado aos baixos níveis dos reservatórios. Segundo o Operador Nacional do Sistema elétrico (ONS), órgão gestor das instalações de geração e distribuição de energia, chegaram às hidrelétricas do país somente 55% da água das chuvas esperadas para janeiro. Trata-se do menor nível desde 1954.
O acúmulo de problemas coloca em xeque o modelo criado por Dilma, em vigor desde 2003.
Curiosamente, apesar de Brasília não ter sido afetada pelo apagão, a presidente despachou ontem no Palácio da Alvorada, residência oficial, devido à manutenção do ar-condicionado de seu gabinete , no Palácio do Planalto.
“O evento ocorrido ontem pode ser considerado de médio porte, pois comprometeu só 8% da carga envolvida. De toda forma, é cedo para avaliar o fato, que ainda será investigado pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel)”, contemporizou o secretário executivo de Minas e Energia, Márcio Zimmermann. Ele repetiu o discurso de Lobão, para “levar tranquilidade ao mercado e à população”, e descartou novos riscos de corte de luz em razão da falta de chuvas e da queda no nível dos reservatórios de hidrelétricas. A torcida, destacou ele, é para que o início do chamado período úmido, no fim de fevereiro, mude a situação.
Para Zimmermann, a falha nada tem a ver com a sobrecarga ao sistema, que está “equilibrado”.
O secretário também rebateu a aposta de analistas de elevação do risco de racionamento de 5% (média padrão adotada pelo governo) para 20%. “Disseram isso em 2008 e 2012, mas nada ocorreu. Os problemas são conjunturais e não estruturais”, discursou.
Conforme o ONS, o acidente, ainda sem causas conhecidas, ocorreu às 14h03, e a chamada “perturbação” no SIN foi detectada entre as cidades de Colinas (TO) e Minaçu (GO), onde está localizada a hidrelétrica de Serra da Mesa. O transtorno interrompeu o fornecimento de aproximadamente 5 mil MW (megawatts) por, pelo menos, 40 minutos. Mas houve cidade em que faltou luz por mais de uma hora.
“Para evitar a propagação do evento, desligou-se, automaticamente, o sistema de cargas selecionadas pelos distribuidores locais”, assinalou o diretor-geral do órgão, Hermes Chipp.
Reservatórios vazios
A situação dos reservatórios das hidrelétricas é dramática. Dados de técnicos do próprio governo indicam que o risco de deficit de energia já chega a 20%, quando o limite aceitável é de 5%. Ou seja, a possibilidade de haver racionamento de eletricidade ao longo deste ano só aumenta. Todas as estimativas feitas pelo Operador Nacional do Sistema (ONS) para as usinas foram frustradas.
A previsão era de que, nas regiões Sudeste e Centro-Oeste, que concentram 70% da capacidade de armazenamento do país, os níveis dos reservatórios chegassem ao fim de janeiro em 52,7%. Mas o que se viu foi uma marca bem inferior, de 40,3%. No Nordeste, em vez dos 57,9% esperados, as represas estavam com apenas 42,6% da capacidade. “Infelizmente, a margem de manobra para evitar o racionamento de energia ou apagões em série está cada vez menor”, admitiu um técnico do governo.
A tendência, destacou o mesmo técnico, é de que as regiões populosas sofram mais com o desligamento de energia. Ontem, quando se interrompeu a transferência de energia da hidrelétrica de Tucuruí, no Pará, para o Sudeste, o Sul e o Centro-Oeste, já se viu o tamanho do estrago. No estado de São Paulo, a Eletropaulo informou que o apagão atingiu a capital e 42 municípios. Ao todo, 1,2 milhão de pessoas foram prejudicadas. No Rio, as concessionárias Light e Ampla desligaram várias subestações, afetando quase 900 mil cidadãos.
O último episódio desse tipo ocorreu em agosto do ano passado, quando uma queimada em uma fazenda do Piauí derrubou cabos e deixou todos os estados do Nordeste no escuro por várias horas. Em 22 de setembro de 2012, um problema nas conexões com o Sudeste atingiu o fornecimento em parte do Nordeste. O maior apagão, no entanto, foi em novembro de 2009, quando mais de 60 milhões ficaram sem luz.
Diante da escassez de chuvas, as cotações da eletricidade no mercado livre atingiu níveis oito vezes superiores à média histórica, de R$ 102 o megawatt. O valor bateu no teto de R$ 822, a exemplo dos tempos do apagão do governo de Fernando Henrique Cardoso, em 2001, quando a cotação máxima para a época ultrapassou a barreira de R$ 500.
Para evitar que esse aumento chegue às contas dos consumidores em ano eleitoral, o Tesouro Nacional terá que fazer um esforço redobrado. A previsão é de que os cofres públicos sejam obrigados a gastar pelo menos R$ 18 bilhões para cobrir as despesas com a redução nas contas de luz, anunciada em setembro de 2012 pela presidente Dilma.
O especialistas lembram, porém, que não haverá escapatória. Em algum momento, o reajuste de energia terá que vir. “Os valores praticados no mercado livre são apenas a expressão monetária da oferta de energia no país. Sobem quando há escassez e ficam baixos quando há excesso de oferta”, disse Reginaldo Medeiros, presidente da Brasileira dos Comercializadores de Energia (Abraceel).
A oposição aproveitou o apagão para criticar o governo. O presidenciável do PSDB, senador Aécio Neves (MG), disse que o governo afugentou os investimentos em energia ao assumir uma postura intervencionista. O deputado Arnaldo Jardim (PPS-SP), presidente da Frente Parlamentar em Defesa da Infraestrutura, disse que o setor elétrico atravessa um “momento de estresse”.
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