Durante o funéreo do caçador, morte de um cão expõe crise de liderança
Arnaldo Bloch e Sebastião Salgado | O Globo
Cercada de floresta fechada, a casa tem quatro portas, que apontam para as trilhas, que levam ao igarapé — onde se toma o banho diário —; à área de caça além do horizonte; aos leitos para pesca (praticada por homens e mulheres com plantas venenosas que tiram dos peixes o oxigênio e os fazem se multiplicar às margens); e às roças onde cultivam suas raízes, frutas e ervas encantadas.
Pela porta que leva ao roçado chega-se à casa de Lourival, que vive em retiro. Maior autoridade espiritual da aldeia, patriarca dos ali chegados, ele não foi a Watoriki nenhuma vez nos dias em que durou a festa. Era visto frequentemente caminhando pelas trilhas com alguma raiz à mão, ou em visitas ao posto da Funai, em seu traje característico: completamente nu, só o cipozinho amarrado à glande, e uma cartola de pierrô decorada com tarjas verdes e amarelas.
O suposto motivo corria à boca miúda: semanas antes, o cão de caça de seu genro, o chefe Davi Kopenawa, teria sido morto a facadas por um dos filhos de Lourival. Os cães comuns não gozam de reputação entre os aldeões e parecem até ter consciência disso, pois apresentam-se diariamente, de forma voluntária, para levar saraivadas na cabeça e se alimentam de restos de pupunha e ossos. Um bom cão de caça, contudo, é altamente respeitado e sua morte equivale à de um “parente”. A morte do cão de Davi tem, além disso, um agravante: remonta ao elo que permitiu a fundação de Watoriki, 25 anos atrás, como refúgio da diáspora de 13 tribos que viviam nas montanhas, dispersas pela expansão da fronteira branca e por conflitos com povos vizinhos (como os moxihatetea, até hoje isolados).
A articulação política fora arquitetada por Lourival e tivera Davi como pivô. Nascido nos anos 1950 no Alto Rio Toototobi (Amazonas) — a pouco mais de 300 quilômetros do leito do Uriracoera, onde, na ficção de Mário de Andrade, nasceu Macunaíma — Davi deixara suas terras após a morte da mãe, de um surto de sarampo trazido por missionários. Aprendeu português para ler a bíblia e acabou virando intérprete da Funai. Militava no Posto Demini, num acampamento abandonado da Camargo Corrêa, encarregada das obras da BR-120, a Perimetral Norte, interrompida depois de causar destruição e mortes (ainda se veem traços de tubulações e do chão tomado pela mata). A essa altura, o posto fazia manobras de atração. Líder de sua tribo, Lourival se deixou seduzir com intenção de encontrar uma brecha e ter acesso a medicamentos e a ferramentas.
Nos sonhos estranhos que Davi tinha, Lourival anteviu vocação xamanística e fez dele seu aprendiz, oferecendo-lhe uma das filhas em casamento. Como a relação sogro-genro é o suporte do modelo de autoridade ianomâmi, o casamento político esvaziou a força do chefe do posto, e Davi foi ao topo da administração regional. Numa cultura na qual o poder é compartilhado pelos chefes de família, em que crianças de cinco anos andam com facões sem serem incomodadas, não há ação coercitiva firme, a não ser quando algo extremamente grave ocorre. Não à toa, o suposto matador se encontrava em fuga na floresta.
Cada vez mais requisitado por compromissos fora da aldeia, Davi perdeu poder local nos últimos anos. No meio da festa, um avião veio apanhá-lo para ir a Manaus e, dali, partir numa viagem de várias escalas até São Francisco, Califórnia, onde iria discursar num fórum da ONU. As lideranças emergentes, da geração do meio, formada por gente que ora serve à Funai, ora a ONGS ou órgãos ligados à saúde indígena — ou se formam como professores na cidade — é uma horda dividida.
Anselmo, que vive a maior parte do ano em Boavista e veio para a festa, vai ao roçado, no importante momento de se colher a mandioca para a confecção do biju, munido de um aparelho de MP3 que toca remixes indígenas e interfere nos sons ritualizados da colheita.
— Estou confuso — confessa. — Mas tenho certeza que ainda farei muito por este povo.
Os mais jovens, garotada que vai à cidade de barco e volta com espelhinhos, gel e o cabelo penteado à Neymar, consideram a reles calabresa trazida pelos visitantes como ouro, metáfora involuntária dos minerais que os brancos arrancaram da terra e que são protegidos pelos espíritos, por não constituírem alimento.
Em meio à confusão, só no último dia da festa, Lourival, que durante todo o período não se deixara fotografar, enfim apareceu na maloca para chorar, com os seus, a morte do jovem caçador, irmão menor de seu afilhado, Raimundo, órfão de pai e mãe, mortos de doença de branco, no tempo em que as 13 tribos vieram da montanha...
Cercada de floresta fechada, a casa tem quatro portas, que apontam para as trilhas, que levam ao igarapé — onde se toma o banho diário —; à área de caça além do horizonte; aos leitos para pesca (praticada por homens e mulheres com plantas venenosas que tiram dos peixes o oxigênio e os fazem se multiplicar às margens); e às roças onde cultivam suas raízes, frutas e ervas encantadas.
Pela porta que leva ao roçado chega-se à casa de Lourival, que vive em retiro. Maior autoridade espiritual da aldeia, patriarca dos ali chegados, ele não foi a Watoriki nenhuma vez nos dias em que durou a festa. Era visto frequentemente caminhando pelas trilhas com alguma raiz à mão, ou em visitas ao posto da Funai, em seu traje característico: completamente nu, só o cipozinho amarrado à glande, e uma cartola de pierrô decorada com tarjas verdes e amarelas.
O suposto motivo corria à boca miúda: semanas antes, o cão de caça de seu genro, o chefe Davi Kopenawa, teria sido morto a facadas por um dos filhos de Lourival. Os cães comuns não gozam de reputação entre os aldeões e parecem até ter consciência disso, pois apresentam-se diariamente, de forma voluntária, para levar saraivadas na cabeça e se alimentam de restos de pupunha e ossos. Um bom cão de caça, contudo, é altamente respeitado e sua morte equivale à de um “parente”. A morte do cão de Davi tem, além disso, um agravante: remonta ao elo que permitiu a fundação de Watoriki, 25 anos atrás, como refúgio da diáspora de 13 tribos que viviam nas montanhas, dispersas pela expansão da fronteira branca e por conflitos com povos vizinhos (como os moxihatetea, até hoje isolados).
A articulação política fora arquitetada por Lourival e tivera Davi como pivô. Nascido nos anos 1950 no Alto Rio Toototobi (Amazonas) — a pouco mais de 300 quilômetros do leito do Uriracoera, onde, na ficção de Mário de Andrade, nasceu Macunaíma — Davi deixara suas terras após a morte da mãe, de um surto de sarampo trazido por missionários. Aprendeu português para ler a bíblia e acabou virando intérprete da Funai. Militava no Posto Demini, num acampamento abandonado da Camargo Corrêa, encarregada das obras da BR-120, a Perimetral Norte, interrompida depois de causar destruição e mortes (ainda se veem traços de tubulações e do chão tomado pela mata). A essa altura, o posto fazia manobras de atração. Líder de sua tribo, Lourival se deixou seduzir com intenção de encontrar uma brecha e ter acesso a medicamentos e a ferramentas.
Nos sonhos estranhos que Davi tinha, Lourival anteviu vocação xamanística e fez dele seu aprendiz, oferecendo-lhe uma das filhas em casamento. Como a relação sogro-genro é o suporte do modelo de autoridade ianomâmi, o casamento político esvaziou a força do chefe do posto, e Davi foi ao topo da administração regional. Numa cultura na qual o poder é compartilhado pelos chefes de família, em que crianças de cinco anos andam com facões sem serem incomodadas, não há ação coercitiva firme, a não ser quando algo extremamente grave ocorre. Não à toa, o suposto matador se encontrava em fuga na floresta.
Cada vez mais requisitado por compromissos fora da aldeia, Davi perdeu poder local nos últimos anos. No meio da festa, um avião veio apanhá-lo para ir a Manaus e, dali, partir numa viagem de várias escalas até São Francisco, Califórnia, onde iria discursar num fórum da ONU. As lideranças emergentes, da geração do meio, formada por gente que ora serve à Funai, ora a ONGS ou órgãos ligados à saúde indígena — ou se formam como professores na cidade — é uma horda dividida.
Anselmo, que vive a maior parte do ano em Boavista e veio para a festa, vai ao roçado, no importante momento de se colher a mandioca para a confecção do biju, munido de um aparelho de MP3 que toca remixes indígenas e interfere nos sons ritualizados da colheita.
— Estou confuso — confessa. — Mas tenho certeza que ainda farei muito por este povo.
Os mais jovens, garotada que vai à cidade de barco e volta com espelhinhos, gel e o cabelo penteado à Neymar, consideram a reles calabresa trazida pelos visitantes como ouro, metáfora involuntária dos minerais que os brancos arrancaram da terra e que são protegidos pelos espíritos, por não constituírem alimento.
Em meio à confusão, só no último dia da festa, Lourival, que durante todo o período não se deixara fotografar, enfim apareceu na maloca para chorar, com os seus, a morte do jovem caçador, irmão menor de seu afilhado, Raimundo, órfão de pai e mãe, mortos de doença de branco, no tempo em que as 13 tribos vieram da montanha...
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