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Terra sem lei: como abandono da Tríplice Fronteira amazônica ajuda o narcotráfico no país (VIDEO)

Sem as belezas naturais ou a infraestrutura da fronteira do Brasil com Argentina e Paraguai, a Tríplice Fronteira amazônica, na divisa com Colômbia e Peru, é hoje um ancoradouro importante para a entrada de drogas e armas no país. A atuação de facções criminosas na região expõe o resultado do que a ausência do Estado pode causar.


Thiago de Araújo | Sputnik

A reportagem da Sputnik Brasil esteve em Tabatinga, cidade amazonense de 65 mil habitantes que fica a 1.105 km de Manaus e que divide as suas fronteiras com Leticia (Colômbia) e Santa Rosa do Javari (Peru). Segundo as autoridades brasileiras, 70% dos entorpecentes que entram pela Amazônia passam pelo município fundado em 1983.


A fronteira é nossa: Família do Norte (FDN) controla as operações do narcotráfico em Tabatinga (AM)
A fronteira é nossa: Família do Norte (FDN) © Sputnik / Thiago de Araújo

"Naquilo que diz respeito à fronteira, particularmente a região de Tabatinga, basicamente há uma reiterada ocorrência de ilícitos ligados ao tráfico de drogas", afirmou em entrevista exclusiva à Sputnik Brasil o procurador Pablo Luz de Beltrand, responsável da Procuradoria-Geral da República (PGR) na região de fronteira.

Ele não é o único a expor tal realidade. "O rio é grande, nele acontece de tudo. É uma terra sem lei", declarou o delegado Marcos Vinicius Meirelles Menezes, responsável máximo da Polícia Federal (PF) no município. Como no restante do Amazonas, os rios são as rotas preferenciais do escoamento de cocaína e maconha para dentro do Brasil.

Segundo o delegado, as informações da PF apontam que hoje os traficantes colombianos utilizam duas rotas mais ao norte de Tabatinga, por Vila Bittencourt e Ipiranga, para o transporte da cocaína. As transações envolvem a Família do Norte (FDN), terceira principal organização criminosa do Brasil, e que se sobrepõe a qualquer presença do Primeiro Comando da Capital (PCC) na cidade.

"Por Tabatinga passa somente a rota peruana de cocaína, que é menos sofisticada", acrescentou Meirelles. Entre o Peru e o Brasil, o rio Solimões é o principal meio de locomoção, e em menos de 5 minutos é possível embarcar em um barco e cruzar a fronteira sem grandes entraves. O mesmo vale para a fronteira seca com o lado colombiano.

Desespero e abandono

Ao final da avenida da Amizade, principal via de Tabatinga, é possível cruzar para a Colômbia. Não há qualquer presença de autoridades brasileiras na fronteira (um posto da Força Nacional, fechado, compõe o cenário), enquanto do lado colombiano há um posto policial que, por sua vez, monitora sem grandes barreiras a entrada e saída de pessoas e veículos.

Na mesma avenida, relativamente distante da fronteira, fica o imóvel que abriga a PGR. Quase em frente, a sede da PF em Tabatinga. Foi lá que a reportagem da Sputnik Brasil testemunhou um dos maiores problemas da Tríplice Fronteira: o subdesenvolvimento social e econômico sob o qual o narcotráfico muitas vezes cria o seu alicerce.

"Ele levou ela de mim, moço!", descrevia Maria*, balbuciando palavras em meio ao choro inevitável que vinha sem ser convidado, mas que era implacável em meio ao desespero daquela situação. Documentos? "Não tenho". E da criança? "Só tenho a carteira de vacinação, tá aqui ó". E o endereço da senhora? "Eu moro em uma invasão…"

O desespero da mulher brasileira que teve uma filha com um homem peruano – o qual ela acusava ainda de agressão, embora admitisse não saber nem mesmo o seu nome completo – não surpreende agentes da PF na cidade. Como em todo o território amazonense, a informalidade expressa pela falta de documentos e informações é uma rotina em Tabatinga.

"A região é sensível, é uma região de escoamento de narcotráfico, perto de uma área da segunda maior terra indígena do Brasil [no Vale do Javari]. Enfim, região de números indígenas alguns dos quais em situação de isolamento, de não-contato com a nossa sociedade, com a nossa cultura, tudo isso faz com que a região seja de fato muito delicada", revelou Beltrand.

A alta presença de organismos federais em Tabatinga – a íntegra das Forças Armadas (Exército, Marinha e Aeronáutica), a Fundação Nacional do Índio (Funai), o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), e a Receita Federal se fazem presentes – é importante, mas não atende às demandas que a realidade impõe.

"O Estado brasileiro tentou pelo Exército ocupar inicialmente, e posteriormente inúmeras agências e órgãos federais vieram para cá. A verdade é que hoje em dia nenhum órgão está a altura dos desafios que a região apresenta. Apesar dessa presença de diversos órgãos, a realidade é que muitos deles estão com seus recursos materiais, humanos, os seus insumos em uma quantidade menor do que aquela que seria necessária para o enfrentamento com uma efetividade maior ao problema do tráfico de drogas, ao problema das questões indígenas, ao problema relacionados ao comercio transfronteiriço", completou o procurador da República.

Coca e as tradições andinas

O delegado federal Meirelles concorda com a avaliação da PGR em Tabatinga, complementando que, na sua opinião, falta uma visão macro do governo federal acerca do desenvolvimento da Amazônia e sua ocupação. O tráfico de drogas na fronteira, assim, seria apenas consequência de uma ausência do Estado.

Com um efetivo de "30 e poucos" policiais, Meirelles ressaltou que a PF possui limitações para atuar em uma região de floresta tão vasta e de difícil acesso. De acordo com o delegado, seria preciso mais do que investimentos maciços que parecem estar fora da agenda política em um ano eleitoral, mas também a colaboração com países do exterior.

Meirelles mencionou que, com base em estudos norte-americanos, o combate efetivo ao narcotráfico passa também pelas plantações de drogas nos países produtores, como é o caso de Colômbia, Peru e Bolívia. Contudo, o aspecto cultural da folha de coca nessas nações é outro entrave e, para ele, "não há uma solução pronta" hoje para lidar com isso.

"Se tiver 100 kg e a demanda dos EUA for de 100 kg, não vem um quilo para cá [Brasil]", pontuou o delegado da PF quando questionado sobre a cocaína que entra pela Amazônia no Brasil e que vem sendo parcela importante na disputa entre FDN e PCC pelas rotas do tráfico de entorpecentes na região Norte do Brasil.

Como a Sputnik Brasil já revelou, a cocaína colombiana e peruana e a maconha do tipo skunk, também da Colômbia, estão alimentando os mercados do Nordeste e do Rio de Janeiro, uma vez que as rotas viárias que alimentam boa parte do mercado brasileiro e internacional ainda vêm da Bolívia (cocaína) e Paraguai (maconha), e são dominadas pelo PCC.

Como autoridades de Manaus, Coari (no Médio Solimões) e em São Paulo já afirmaram anteriormente à reportagem, o PCC caminha para ter um domínio do tráfico de drogas transnacional na América do Sul, segundo Meirelles. O próximo passado para isso, analisado pelo delegado da PF, seria tomar o controle dos entorpecentes em países vizinhos.


Rotas do tráfico na Amazônia

"Polícia para quem precisa"

"Dizem que ela existe para ajudar. Dizem que ela existe pra proteger. Eu sei que ela pode te parar. Eu sei que ela pode te prender. Polícia para quem precisa". Este trecho da canção 'Polícia', da banda de rock Titãs poderia resumir bem a situação da segurança pública em todo o Brasil. Em Tabatinga, a situação não é diferente.

Todas as autoridades ouvidas pela Sputnik Brasil ao longo da expedição pelo rio Solimões, desde Manaus até a Tríplice Fronteira, foram unânimes em criticar a ausência de coordenação entre as polícias – Federal, Militar e Civil – e as Forças Armadas para o combate ao tráfico de drogas e outros crimes comuns na região, como o contrabando de combustíveis.

"A segurança pública no Brasil é totalmente desconectada. A Polícia Militar não fala com a Polícia Civil, a Polícia Civil não fala com a Polícia Federal, a Polícia Federal não fala com a Polícia Militar, eles não tem uma coordenação. São polícias desorganizadas no Brasil tá, e os presos acabam se sobressaindo com a sua organização precária porque a própria polícia tem uma certa desorganização com relação a isso", resumiu o juiz Luís Carlos de Valois, do Tribunal de Justiça do Estado do Amazonas (TJ-AM).

A situação permite que, vez ou outra, o tráfico de drogas tente lançar mão de "mulas" – termo que trata de pessoas cooptadas por criminosos para o transporte de quantidades menores de entorpecentes – para levar cargas para outras partes do Brasil. Único aeroporto do Alto Solimões e com um único voo diário para Manaus, o Internacional de Tabatinga já registrou apreensões, nada comparável ao que se estima ser transportado pelos rios.

"Em muitas dessas situações nas quais eu me deparo no dia a dia, é possível vislumbrar sim que pessoas são cooptadas por carências econômicas, por dificuldade de inserção no mercado formal, por dificuldades atinentes às suas rendas, particularidades de vida… essas pessoas são cooptadas pela promessa de um retorno fácil", contou o procurador Pablo Luz de Beltrand.

Como na Tríplice Fronteira mais famosa do país, que abriga as Cataratas do Iguaçu, a porosidade e a falta de fiscalização vista também na confluência entre Brasil, Colômbia e Peru parecem longe de uma solução pronta para ser aplicada na amplitude amazônica. E isto é fundamental, de acordo com o delegado do Departamento de Investigação sobre Narcóticos (Denarc) da Polícia Civil do Amazonas, Paulo Mavignier.

"Se houver um fortalecimento na região das fronteiras, um grupo, uma ação coordenada, a gente tem como reprimir 70%, 80% desse tráfico que entra aqui. Mas tem que haver uma mobilização muito maior na região das fronteiras. As fronteiras precisam ser isoladas", sentenciou, enquanto exaltava as apreensões de acima de 6 toneladas apenas em 2018.

O número, porém, parece estar longe de ser alentador. "Nós não temos nem ideia do volume de substâncias entorpecentes que passam pela região do rio Solimões", lamentou o promotor Weslei Machado, titular do Ministério Público do Amazonas (MP-AM) em Coari, município conhecido como a “Capital dos Piratas” do Solimões e que fica a pouco mais de 700 km de Tabatinga.

"Você sabe que nos EUA, segundo estatísticas, só 2% da droga que entra nos EUA é apreendida. 2%! Se estão prendendo isso [lá], no Brasil, com a polícia com as condições muito piores do que a norte-americana, com as fronteiras muito menos vigiadas que a norte-americana, com financiamento de segurança pública muito menor […] imagina quanto não é esse comércio se tudo isso está sendo apreendido no Amazonas. Quer dizer, é um negócio muito maior. Muito maior", acrescentou o juiz Valois.

A reportagem da Sputnik Brasil tentou ouvir os responsáveis pelo Exército e pela Marinha em Tabatinga, mas não obteve retorno.


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