Um dos idealizadores do sequestro do embaixador americano em 1969, Cid Benjamin fala sem arrependimento da militância, mas reconhece erros. Sobre torturadores, garante não guardar ódio, mas quer vê-los julgados.
Deutsch Welle
Quatro de setembro de 1969, auge dos Anos de Chumbo. Numa ação sem precedentes na história brasileira, o movimento MR-8, uma dissidência do Partido Comunista, sequestra o então embaixador americano no país, Charles Burke Elbrick. Para soltá-lo, duas exigências: a libertação de 15 presos políticos e a publicação de um manifesto na imprensa.
O regime não demorou a ceder: menos de 48 horas, os presos foram libertados e o texto, publicado. Por trás da ação estava um grupo de jovens originários do movimento estudantil, entre eles Cid Benjamin, então com apenas 21 anos. Ele foi o idealizador – ao lado do mais tarde ministro Franklin Martins – e um dos principais executores da ação.
Meses mais tarde, Cid foi preso. Por sua militância, pagou com isolamento, tortura e exílio – foram quase dez anos entre Argélia, Cuba, Chile e Suécia. Hoje, aos 65 anos, jornalista e diretor de comunicação da Comissão da Verdade do Rio, ele fala sem arrependimento e sem revanchismo sobre o passado – como sugere o título de seu livro, Gracias a la vida – Memórias de um militante.
Cid diz não guardar ódio de seus torturadores, mas quer vê-los julgados. A luta armada, afirma, foi um erro político, porém uma alternativa legítima para lutar contra um regime ditatorial. E sobre o embaixador, admite: "Nós o teríamos matado se as exigências não fossem atendidas."
DW: Hoje há vozes questionando o comprometimento daquela esquerda armada com a democracia. O argumento é de que as intenções dela não eram muito mais democráticas que as do regime. Você concorda?
Cid Benjamin: Não. Os mesmos que deram o golpe em 1964 levaram Getúlio Vargas ao suicídio em 1954; tentaram impedir a posse do Juscelino Kubitschek em 1956 e do Jango em 1961; e depois deram o golpe em 1964. Com o AI-5, eles tornaram um regime que já era ditatorial em algo muito mais duro. E foi justamente esse endurecimento da ditadura que fez com que uma parcela dos opositores, que não estavam na luta armada inicialmente, acabasse optando por esse caminho.
Foi o melhor caminho?
Foi um caminho politicamente errado, mas não do ponto de vista da legitimidade. Foi legítimo pegar em armas para combater um regime de opressão. Isso é reconhecido pela Carta de Direitos Humanos da ONU e pela Doutrina Social da Igreja. Foi uma avaliação política incorreta naquele momento no Brasil. Não se teria condições de conseguir um amplo apoio popular e, com isso, derrubar a ditadura. Mas foi a forma possível depois do acirramento do regime militar. Depois, os militares tentaram se igualar e dizer que éramos todos antidemocráticos, o que não corresponde à verdade.
Até que ponto a luta armada levou a um maior endurecimento do regime?
Muito antes de se pensar em luta armada, os golpistas, como eu disse, já vinham tentando dar um golpe. E depois, já dentro da ditadura, a linha dura foi tomando corpo, começando com a saída do [primeiro presidente da ditadura, Humberto de Alencar] Castelo Branco, que era mais moderado. A luta armada só ganhou peso e alguma relevância social depois do AI-5, quando outros canais de participação política e exercício da oposição foram fechados.
A luta armada acabou então sendo algo inevitável?
As manifestações bateram no teto. Os canais institucionais e de luta legal foram muito restringidos. Havia o exemplo recente da Revolução Cubana e do Vietnã, onde a luta armada do povo conseguiu expulsar o invasor americano. Isso tudo influenciou. Agora, se não houvesse o endurecimento do regime, a luta armada não teria acontecido da forma como aconteceu.
Na época, você, então com pouco mais de 20 anos, tinha noção de que vencer era quase impossível?
Achávamos que seria uma luta árdua, longa, mas com alguma chance de vitória. E, de certa maneira, Cuba e Vietnã serviam como alento. Mostravam que, através da guerrilha, o fraco poderia enfrentar e vencer o mais forte. Se, na época, tivéssemos a percepção de que seria uma derrota, não teríamos tomado aquele caminho.
Quando surgiu a ideia de sequestrar o embaixador?
A ideia foi minha e do [jornalista e ex-ministro] Franklin Martins. Uma vez, estávamos conversando juntos no Rio quando o carro com a bandeirinha dos EUA no capô passou pela gente, e reparamos que o embaixador fazia todo dia o mesmo trajeto, sem segurança. Já havia, na época, uma preocupação nossa em libertar presos.
A captura foi relativamente fácil...
A captura foi fácil, a devolução é que foi difícil. A casa foi localizada e vigiada. Quando nós saímos com o embaixador, eles vieram atrás. Houve cenas típicas de filmes policiais, com perseguições, carros avançando sinal, subindo pela calçada. Foi complicado. Mas, no final, ninguém foi preso.
Vocês pediram a leitura de um manifesto na TV e a libertação de 15 presos. Se o regime não tivesse atendido, o que vocês teriam feito?
Nós o teríamos matado se as exigências não fossem atendidas. Isso, dito hoje, parece estranho, mas nós tínhamos uma avaliação tranquila e clara de que os militares aceitariam nossas exigências, dado o grau de subserviência da ditadura militar aos Estados Unidos.
Ele não entregou vocês depois...
Quando foi questionado se poderia nos identificar, ele disse que não poderia, porque nós só falávamos com ele com capuz. O que não era verdade. Tínhamos uma relação cordial com ele no cativeiro. Conosco, ele criticava a tortura e a censura. Depois ele deu declarações muito elogiosas a nosso respeito. Disse que éramos jovens, idealistas, queríamos o melhor para o país. Naturalmente ele discordava dos métodos, mas nos respeitava e considerava corajosos.
Pela militância, você pagou com tortura, exílio, isolamento e prisão. Arrepende-se?
Fui preso meses após o sequestro. Fiquei dois meses na prisão e, em junho de1970, fui trocado pelo embaixador alemão. Não me arrependo. Valeu a pena. Eu faria tudo de novo, mas de forma diferente. Não sou incapaz de perceber erros em nossa trajetória. Mas o rumo geral da trajetória de militância política, de resistência à ditadura, isso eu mantenho e não me arrependo em nada.
Hoje você ainda se declara comunista?
A partir da experiência com os países do Leste Europeu, eu, que sempre me declarei comunista, não me declaro mais. Na cabeça das pessoas, comunismo ficou sendo isso, e isso não tem nada a ver com o que eu quero. Eu quero um regime socialista, com democracia, com liberdade e pluripartidarismo.
Na época da militância vocês já discutiam isso?
Nós tínhamos uma visão crítica. Nossa organização, o MR-8, uma dissidência do Partido Comunista, criticava a invasão da Tchecoslováquia e o esmagamento da Primavera de Praga pelos soviéticos. Nós tínhamos uma percepção crítica quanto aos regimes do Leste Europeu. Não tão crítica como hoje, naturalmente, já que esses regimes se mostraram piores do que pareciam.
Você gosta da forma como lidamos com os crimes da ditadura?
Nós estamos atrasadíssimos. A Comissão da Verdade foi criada só em 2012. E a ditadura acabou em 1985. Outros países latino-americanos estão muito mais avançados não só na apuração, como na punição dos responsáveis por crimes de lesa-humanidade.
A que se deve isso?
À forma como a ditadura acabou no Brasil. Os militares controlaram o processo de saída de cena. Quando o [Ernesto] Geisel começa a chamada distensão, a ditadura só vai acabar dez anos depois. Eles tentaram manter esse processo sob controle, seja para evitar mudanças sociais mais profundas, seja para evitar o conhecimento dos crimes. As comissões da verdade teriam que ter sido criadas antes.
No seu livro, você usa um tom sem revanchismo, às vezes conciliador, sobre o passado.
Eu não me considero conciliador. Não tenho revanchismo nem ódio pessoal de quem me torturou. Acho que as coisas têm que vir à tona, eles têm que sentar no banco dos réus, mas não porque eu tenho rancor e ressentimento, mas porque o futuro da tortura está ligado ao futuro dos torturadores. E é fundamental que o país saiba o que aconteceu nos porões e que os responsáveis sejam julgados, mesmo que depois sejam anistiados. É um ciclo que tem que ser cumprido.
Quatro de setembro de 1969, auge dos Anos de Chumbo. Numa ação sem precedentes na história brasileira, o movimento MR-8, uma dissidência do Partido Comunista, sequestra o então embaixador americano no país, Charles Burke Elbrick. Para soltá-lo, duas exigências: a libertação de 15 presos políticos e a publicação de um manifesto na imprensa.
O regime não demorou a ceder: menos de 48 horas, os presos foram libertados e o texto, publicado. Por trás da ação estava um grupo de jovens originários do movimento estudantil, entre eles Cid Benjamin, então com apenas 21 anos. Ele foi o idealizador – ao lado do mais tarde ministro Franklin Martins – e um dos principais executores da ação.
Meses mais tarde, Cid foi preso. Por sua militância, pagou com isolamento, tortura e exílio – foram quase dez anos entre Argélia, Cuba, Chile e Suécia. Hoje, aos 65 anos, jornalista e diretor de comunicação da Comissão da Verdade do Rio, ele fala sem arrependimento e sem revanchismo sobre o passado – como sugere o título de seu livro, Gracias a la vida – Memórias de um militante.
Cid diz não guardar ódio de seus torturadores, mas quer vê-los julgados. A luta armada, afirma, foi um erro político, porém uma alternativa legítima para lutar contra um regime ditatorial. E sobre o embaixador, admite: "Nós o teríamos matado se as exigências não fossem atendidas."
DW: Hoje há vozes questionando o comprometimento daquela esquerda armada com a democracia. O argumento é de que as intenções dela não eram muito mais democráticas que as do regime. Você concorda?
Cid Benjamin: Não. Os mesmos que deram o golpe em 1964 levaram Getúlio Vargas ao suicídio em 1954; tentaram impedir a posse do Juscelino Kubitschek em 1956 e do Jango em 1961; e depois deram o golpe em 1964. Com o AI-5, eles tornaram um regime que já era ditatorial em algo muito mais duro. E foi justamente esse endurecimento da ditadura que fez com que uma parcela dos opositores, que não estavam na luta armada inicialmente, acabasse optando por esse caminho.
Foi o melhor caminho?
Foi um caminho politicamente errado, mas não do ponto de vista da legitimidade. Foi legítimo pegar em armas para combater um regime de opressão. Isso é reconhecido pela Carta de Direitos Humanos da ONU e pela Doutrina Social da Igreja. Foi uma avaliação política incorreta naquele momento no Brasil. Não se teria condições de conseguir um amplo apoio popular e, com isso, derrubar a ditadura. Mas foi a forma possível depois do acirramento do regime militar. Depois, os militares tentaram se igualar e dizer que éramos todos antidemocráticos, o que não corresponde à verdade.
Até que ponto a luta armada levou a um maior endurecimento do regime?
Muito antes de se pensar em luta armada, os golpistas, como eu disse, já vinham tentando dar um golpe. E depois, já dentro da ditadura, a linha dura foi tomando corpo, começando com a saída do [primeiro presidente da ditadura, Humberto de Alencar] Castelo Branco, que era mais moderado. A luta armada só ganhou peso e alguma relevância social depois do AI-5, quando outros canais de participação política e exercício da oposição foram fechados.
A luta armada acabou então sendo algo inevitável?
As manifestações bateram no teto. Os canais institucionais e de luta legal foram muito restringidos. Havia o exemplo recente da Revolução Cubana e do Vietnã, onde a luta armada do povo conseguiu expulsar o invasor americano. Isso tudo influenciou. Agora, se não houvesse o endurecimento do regime, a luta armada não teria acontecido da forma como aconteceu.
Na época, você, então com pouco mais de 20 anos, tinha noção de que vencer era quase impossível?
Achávamos que seria uma luta árdua, longa, mas com alguma chance de vitória. E, de certa maneira, Cuba e Vietnã serviam como alento. Mostravam que, através da guerrilha, o fraco poderia enfrentar e vencer o mais forte. Se, na época, tivéssemos a percepção de que seria uma derrota, não teríamos tomado aquele caminho.
Quando surgiu a ideia de sequestrar o embaixador?
A ideia foi minha e do [jornalista e ex-ministro] Franklin Martins. Uma vez, estávamos conversando juntos no Rio quando o carro com a bandeirinha dos EUA no capô passou pela gente, e reparamos que o embaixador fazia todo dia o mesmo trajeto, sem segurança. Já havia, na época, uma preocupação nossa em libertar presos.
A captura foi relativamente fácil...
A captura foi fácil, a devolução é que foi difícil. A casa foi localizada e vigiada. Quando nós saímos com o embaixador, eles vieram atrás. Houve cenas típicas de filmes policiais, com perseguições, carros avançando sinal, subindo pela calçada. Foi complicado. Mas, no final, ninguém foi preso.
Vocês pediram a leitura de um manifesto na TV e a libertação de 15 presos. Se o regime não tivesse atendido, o que vocês teriam feito?
Nós o teríamos matado se as exigências não fossem atendidas. Isso, dito hoje, parece estranho, mas nós tínhamos uma avaliação tranquila e clara de que os militares aceitariam nossas exigências, dado o grau de subserviência da ditadura militar aos Estados Unidos.
Ele não entregou vocês depois...
Quando foi questionado se poderia nos identificar, ele disse que não poderia, porque nós só falávamos com ele com capuz. O que não era verdade. Tínhamos uma relação cordial com ele no cativeiro. Conosco, ele criticava a tortura e a censura. Depois ele deu declarações muito elogiosas a nosso respeito. Disse que éramos jovens, idealistas, queríamos o melhor para o país. Naturalmente ele discordava dos métodos, mas nos respeitava e considerava corajosos.
Pela militância, você pagou com tortura, exílio, isolamento e prisão. Arrepende-se?
Fui preso meses após o sequestro. Fiquei dois meses na prisão e, em junho de1970, fui trocado pelo embaixador alemão. Não me arrependo. Valeu a pena. Eu faria tudo de novo, mas de forma diferente. Não sou incapaz de perceber erros em nossa trajetória. Mas o rumo geral da trajetória de militância política, de resistência à ditadura, isso eu mantenho e não me arrependo em nada.
Hoje você ainda se declara comunista?
A partir da experiência com os países do Leste Europeu, eu, que sempre me declarei comunista, não me declaro mais. Na cabeça das pessoas, comunismo ficou sendo isso, e isso não tem nada a ver com o que eu quero. Eu quero um regime socialista, com democracia, com liberdade e pluripartidarismo.
Na época da militância vocês já discutiam isso?
Nós tínhamos uma visão crítica. Nossa organização, o MR-8, uma dissidência do Partido Comunista, criticava a invasão da Tchecoslováquia e o esmagamento da Primavera de Praga pelos soviéticos. Nós tínhamos uma percepção crítica quanto aos regimes do Leste Europeu. Não tão crítica como hoje, naturalmente, já que esses regimes se mostraram piores do que pareciam.
Você gosta da forma como lidamos com os crimes da ditadura?
Nós estamos atrasadíssimos. A Comissão da Verdade foi criada só em 2012. E a ditadura acabou em 1985. Outros países latino-americanos estão muito mais avançados não só na apuração, como na punição dos responsáveis por crimes de lesa-humanidade.
A que se deve isso?
À forma como a ditadura acabou no Brasil. Os militares controlaram o processo de saída de cena. Quando o [Ernesto] Geisel começa a chamada distensão, a ditadura só vai acabar dez anos depois. Eles tentaram manter esse processo sob controle, seja para evitar mudanças sociais mais profundas, seja para evitar o conhecimento dos crimes. As comissões da verdade teriam que ter sido criadas antes.
No seu livro, você usa um tom sem revanchismo, às vezes conciliador, sobre o passado.
Eu não me considero conciliador. Não tenho revanchismo nem ódio pessoal de quem me torturou. Acho que as coisas têm que vir à tona, eles têm que sentar no banco dos réus, mas não porque eu tenho rancor e ressentimento, mas porque o futuro da tortura está ligado ao futuro dos torturadores. E é fundamental que o país saiba o que aconteceu nos porões e que os responsáveis sejam julgados, mesmo que depois sejam anistiados. É um ciclo que tem que ser cumprido.
0 $type={blogger}:
Postar um comentário