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João Hélio e os “Manés” da sociedade marginal brasileira

Ucho Haddad - InfoRel

No crime que causou comoção em todo o País, não foi apenas João Hélio Lopes Vieites, o garoto que foi arrastado até a morte por sete quilômetros no subúrbio do Rio, que perdeu a vida.

Perderam a vida, também, os seus algozes, uma vez que a pena prevista para cada um dos criminosos é de quarenta anos. É verdade que a progressão da pena pode reduzir o tempo de cada um atrás das grades, mas os bastidores do sistema penitenciário é o que se pode chamar de fim do mundo.

Em situações como a do mais recente crime que abalou a sociedade brasileira é absolutamente normal que a lei de Talião venha à baila, como forma de compensar a indignação e a tristeza populares.

Por mais cristão que o cidadão possa ser, em tais momentos o instinto de vingança tende a falar mais alto, contrariando o que um dia pregou o mais popular dos freqüentadores de Nazaré.

Filosofias humanistas à parte, o importante é analisar, de maneira consciente, as reais possibilidades de uma solução coerente e definitiva para um problema que não só assusta a população, mas que cada vez mais afasta o brasileiro do direito à vida digna. Entender o que significa esse tal direito carece de uma viagem no significado do vernáculo dignidade.

Entre as muitas definições apresentadas pelo Houaiss, conhecido dicionário da língua portuguesa, a melhor delas mostra que dignidade é “respeito aos próprios sentimentos, valores; amor-próprio”.

Se a família Lopes Vieites enfrentará, daqui por diante, uma inversão dos valores dignos de respeito, os criminosos terão tempo suficiente para entender como a indignidade de vida de cada um desaguou em tamanha barbárie. O discurso de que entra no mundo do crime quem quer, não passa de uma manifestação exacerbada daqueles que se sentem impotentes diante de um Estado diuturnamente ineficiente.

O certo e o errado são parentes próximos, assim como o amor e o ódio, separados por uma tênue e quase invisível linha. No contraponto, é preciso entender que a necessidade não tem limite.

Mas que necessidade é essa?

Em uma sociedade constantemente vilipendiada pelos tentáculos do capitalismo, consumir é a única forma de ser aceito nos guetos que o próprio ser humano cria como forma restrita de vida. Homens e mulheres se identificam por produtos, serviços e marcas, sem se preocuparem com o que acontece na esquina mais próxima.

Os que vivem à margem da sociedade buscam no radicalismo existencial a maneira mais barata de sobressair dentro do próprio gueto vivencial. E o crime muitas vezes, ao transcender os limites impostos por gírias, cortes de cabelo, vestimentas e linguajar segregador, se torna a majestade de um modo de vida.

Em outras palavras, o grau de uma barbárie está diretamente relacionado ao índice de respeitabilidade conquistado por quem a comete. E vice-versa.

Solucionar tamanho caos exige calma e ponderação do pensamento, deixando de lado os arroubos provenientes de uma comoção que tende a se esvair com o passar do tempo, ficando na memória apenas um fato isolado que será comentário, ainda por algumas semanas, nas mesas das manicures e nos balcões de botecos.

Ou seja, dentro de algum tempo só a família do pequeno João Hélio e o inquérito policial que investiga a sua morte é que se lembrarão do garoto que foi arrastado covarde e cruelmente pelas ruas do subúrbio carioca. Um pela dor, outro pela obrigação.

Alterar a maioridade penal pouco adianta no País que faz da criação de leis um atalho para o descumprimento. Na verdade, as leis que aí estão, se colocadas em prática, resolveriam boa parte do problema que aflige os brasileiros: a falta de segurança. Impingir à sociedade apenas a dureza da lei é fazer do conjunto legal uma ferramenta ditatorial.

Mudar a legislação vigente pode ser um afago extemporâneo na esfarelada esperança do cidadão, mas em nada auxilia na busca de uma solução definitiva. O equilíbrio de uma sociedade supostamente democrática está na convivência pacífica dos contrapontos, sem que a dignidade de vida seja ameaçada pelos oxímoros.

Caso fosse mudada a legislação penal e a cada unidade da federação dado o direito de legislar sobre o assunto isoladamente, o Brasil viveria um novo tipo de processo migratório, que teria criminosos como agentes interessados. Em outras palavras, os Estados que exibissem leis mais brandas seriam transformados em eldorados da impunidade para criminosos incorrigíveis.

Por outro lado, a falta de celeridade da Justiça, sempre atropelada pelo excesso de trabalho e pelas chicanas jurídicas que engrossam milhões de processos, seria outro fator de comprometimento de uma tentativa de solução buscada no calor dos ânimos.

Quando a ministra Ellen Gracie Northfleet, presidente do Supremo Tribunal Federal, o sempre sisudo STF, se contrapõe à idéia de redução da maioridade penal, o faz com conhecimento jurídico e com a consciência de alguém que ocupa o mais alto cargo da nação na esfera do Judiciário.

Alterar a legislação penal para coibir excessos exigiria, também, a imediata mudança ou adequação da Lei das Execuções Penais, conjunto jurídico-legal que baliza a aplicação das penas em todo o território nacional. Apenas baliza, pois a aplicação das penas foge do que determina a referida lei.

Se ao Estado é dado o direito de julgar e condenar aqueles que transgridem a lei, os usos e os costumes, a ele – Estado – é conferida a obrigação de recuperar o condenado e levá-lo de volta à sociedade que um dia o excluiu de alguma maneira.

Se por um lado o ser humano não foi criado para ter a liberdade cerceada, por outro o sistema prisional não recupera nem mesmo em sonho. Imaginar que uma condenação serve como tábua de salvação para um transgressor qualquer, é o maior e mais irresponsável dos enganos.

Quem se aventurar por uma simples pesquisa sobre as razões, diretas ou indiretas, que levam o cidadão a ingressar no mundo do crime verá que o tráfico de drogas está em primeiro lugar, sendo que o segundo colocado nessa lista do caos social está bem distante da dianteira. E combater o tráfico de drogas é uma obrigação do governo federal, que não o faz por motivos dos mais variados.

Segurança pública e redução da criminalidade são assuntos que freqüentam o bate-boca político em duas situações distintas, porém próximas. O palanque, como ferramenta para angariar votos, e o cotidiano político como justificativa de uma eleição nem sempre merecida.

Pela dimensão da criminalidade que toma conta do País, o Brasil precisaria de, no mínimo, dois novos presídios a cada mês. Quando, em 2003, Luiz Fernando da Costa, que atende pela alcunha de Fernandinho Beira-Mar, determinou aos seus comandados que ônibus fossem incendiados no Rio de Janeiro, o ministro Márcio Thomaz Bastos (Justiça), falando em nome do então neófito presidente Lula, prometeu construir em quatro anos meia dúzia de presídios federais de segurança máxima.

O primeiro mandato do presidente Luiz Inácio acabou, e apenas dois presídios foram entregues. O de Catanduvas, no interior do Paraná, que hoje abriga o traficante Fernandinho Beira-Mar, e o de Campo Grande, em Mato Grosso do Sul, que não funciona por falta de licença ambiental.

Diz a sabedoria popular que o exemplo vem de cima. Se bons exemplos deveriam integrar um movimento descendente, o Brasil vive na contra-mão da lógica, pois políticos acusados dos mais diversos crimes continuam impunes e sobrevivendo às custas do dinheiro do contribuinte.

Na outra ponta do problema existe a tese, já comprovada, de que a corrupção gerada pelo narcotráfico é piramidal, capilar e ascendente. Traduzindo, do menos ao mais poderoso, no âmbito do poder, todos se beneficiam de alguma forma com o desrespeito às leis.

A combinação dos dois assuntos mencionados provoca a sensação de impunidade reinante no País, e que tem a política tupiniquim como a maior de todas as odes.

Já sem condição de julgar com a celeridade necessária os processos que entulham suas prateleiras e outros escaninhos disponíveis, o Judiciário brasileiro precisaria ter a sua estrutura ampliada no caso de redução da maioridade penal, pois tal artifício, transformado em bandeira do clamor popular, jamais inibiria o cometimento de crimes bárbaros como o que ceifou a vida do pequeno João Hélio.

Inviáveis política e administrativamente, Estados corruptos olham de soslaio para as contundentes – porém muitas vezes necessárias – parcerias com a iniciativa privada apenas como solução de curto prazo para financiar com dinheiro sujo sua máquina politiqueira paralela.

Parcerias público-privadas, no âmbito prisional, têm muito mais experiências de sucesso ao redor do planeta do que casos de desacerto. É fato que a mutação desordenada da sociedade exige a construção de novos presídios, mas só a edificação sólida da Educação é que retomará a rota correta da evolução social.

Experiências isoladas, sempre da iniciativa privada, mostram que dedicação ao ser humano é a melhor das saídas para um mundo quase sem solução. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que adotou um modelo totalitarista e populista – a exemplo do que vem fazendo o pára-quedista Hugo Chávez na vizinha Venezuela – fecha os olhos para mensaleiros, sanguessugas e aloprados, enquanto a sociedade brasileira é vítima de uma sempre crescente autofagia.

O Palácio do Planalto tem olhos para Ongs comandada por companheiros, mas não encontra tempo para pensar na recuperação de um povo que já não sabe direito o que é direito. E a esmola batizada de Bolsa-Família – que gera uma legião de desocupados – é o éter que anestesia a consciência de uma sociedade que um dia acreditou, inocentemente, que a esperança venceria o medo com facilidade.

Até o final do governo do presidente Lula – que se nada der errado acontece em 2010 - outras dezenas de milhares de brasileiros terão o mesmo fim trágico do pequeno João Hélio, mas provavelmente não tão bizarro e cruel.

Tal estimativa evidencia que para o Brasil ser uma versão xavante do Iraque bastam alguns aviões de guerra ianques estacionados no Galeão ou em Cumbica. Até porque, em números de mortos, brasileiros e iraquianos estão quase empatados.

Quando ocupou o parlatório do Palácio do Planalto para falar aos seus eleitores por ocasião da cerimônia de posse, em 1º de janeiro próximo passado, o presidente Luiz Inácio classificou como terrorismo a onda de crimes que assola o Rio de Janeiro.

Considerando que a utópica e desmedida declaração presidencial tem uma ínfima nesga de verdade, terrorismo não se combate com quinhentos homens, ditos policiais, que dias antes de confrontar traficantes organizados ainda aprendiam como empunhar uma arma de fogo.

Ao afirmar que a necessidade não tem limite, o faço com conhecimento de causa. Tomo como exemplo, para justificar tal afirmação, uma conversa sem compromisso que mantive com uma presa da extinta Penitenciária Feminina do Tatuapé, na zona leste da capital paulista.

Em dado momento, a interna do sistema carcerário disparou palavras inesquecíveis e patrocinadoras de uma reflexão contínua e permanente. A minha interlocutora de então afirmou, sem pudor algum, que só veio a conhecer o que eram xampu e desodorante depois de apenada.

Ora, qual será a diferença entre o certo e o errado para alguém que precisou de uma sentença judicial para conhecer o mínimo de higiene? Eis a realidade do Brasil, um país que condena vítimas do sistema, enquanto absolve criminosos sistêmicos.

Aos ocupantes do Palácio do Planalto, sejam quais forem suas cangalhas políticas, deve ser lembrado que a democracia, enquanto durar, é o sistema político-governamental que transfere ao povo a obrigação constitucional de tomada de decisões importantes sobre políticas públicas, nunca circunstanciais ou ocasionais, tendo a legalidade como parâmetro maior.

Novos garotos como João Hélio o Brasil não quer mais, porém o País é responsável pelos “Manés” que a sociedade marginal produz.

Ucho Haddad, 47, é jornalista investigativo, colunista político, poeta e escritor.

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