Em nome de uma ideologia primitivista, a Funai e os religiosos do Cimi jogam índios contra pequenos agricultores e até assentados do Incra em Mato Grosso do Sul. Estão semeando ventos que vão produzir uma tempestade no campo
Robson Bonin | Veja
O cenário bucólico no município de Iguatemi, em Mato Grosso do Sul, onde hoje mora o agricultor José Joaquim do Nascimento, é apenas aparente. Em outubro passado, a 17 quilômetros dali, Zé Alagoano, como é conhecido esse senhor de 91 anos de idade, foi expulso pela segunda vez do seu sítio. Armados de porretes e facões, índios guaranis-caiovás cercaram a casa da família e ameaçaram atear fogo em tudo, caso a família não abandonasse imediatamente as terras. Um caminhão arrumado às pressas levou os poucos e rústicos móveis. Zé Alagoano deixou para trás as galinhas, uma vaca leiteira e um motor do pequeno engenho de farinha. Nos dias seguintes, os índios depredaram a propriedade. Até as madeiras do telhado e as esquadrias das portas e janelas foram arrancadas, transformando a antiga casa em um monte de ruínas. Amparado por advogados de um vizinho, ele conseguiu a reintegração de posse das terras recebidas do governo e cultivadas pela família há mais de cinquenta anos. Com receio de que a ação policial possa gerar um confronto, as autoridades se recusam a cumprir a ordem judicial.
A convivência entre índios e agricultores na região é historicamente pacífica. O que mudou para pior — muito pior — o convívio foi a decisão da Funai, por razões políticas e ideológicas e criar no Brasil uma "questão indígena". Nada mais fácil. Afinal, quem pode ser contra a defesa dos selvagens puros e inocentes diante do poder econômico e da maldade intrínseca do homem branco europeu, esse predador nato, mercantilista frio, pronto a matar para roubar até satisfazer sua fome de riquezas? Essa narrativa é cativante. Mas ela é apenas isso, uma narrativa. Na vida real, o que se observa é que a Funai e seus aliados no Conselho Indigenista Missionário (Cimi) estão levando a manipulação política das populações indígenas a níveis intoleráveis, ilegais e em franco desafio à Constituição.
Na vida real, o que ocorre é que a Funai e o Cimi estão insuflando os índios não apenas contra as grandes propriedades e o agronegócio. Agora as vítimas são pequenos produtores de agricultura familiar — brasileiros pobres e trabalhadores que vivem em áreas que nunca pertenceram aos índios e nem sequer são disputadas pelas lideranças indígenas.
Incentivados pelos funcionários da Funai, os índios promoveram neste ano 105 invasões, 67 delas em Mato Grosso do Sul. Eles invadiram terras de reservas demarcadas ocupadas por fazendeiros? Não. Invadiram terras que eram comprovadamente habitadas por índios em 1988, ano-base para os processos legais de demarcação de acordo com a Constituição brasileira? Não.
Eles invadiram terras que os antropólogos e os religiosos do Cimi decidiram pelos critérios deles que devem ser entregues aos índios. Os critérios da Funai e do Cimi são bastante peculiares. Com base neles, estão sendo reivindicadas como reservas indígenas áreas produtivas e até cidades em Minas Gerais, em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul.
No domingo 8, o produtor rural Vagner José Varago pensou duas vezes antes de tomar uma decisão: posar para uma fotografia na porteira da Fazenda São José, invadida pelos índios em outubro. Ameaçado de morte, ele não voltava ao local desde o dia em que fora forçado a abandonar a casa na calada da noite.
"Durante a madrugada, os índios cortavam as cercas, matavam o gado, botavam fogo no pasto, a gente não podia sequer sair", conta o produtor, que agora mora com a mãe na cidade. "É uma sensação muito dolorosa, de revolta, de impotência, você não poder entrar na sua propriedade", diz ele, observando o vaivém dos índios.
Dono da propriedade desde 1979, Varago conta que já gastou boa parte das economias da família para pagar advogados e peritos que auxiliam no processo de reintegração que tramita na Justiça. "A gente sabe que o culpado não é o índio. Os responsáveis por isso são essas ONGs, a Funai e o Cimi, que envenenam a cabeça deles."
Do lado dos índios, a insatisfação é a mesma: "Nunca tivemos conflito com os fazendeiros. Os dois lados querem resolver essa questão. O problema é que o governo fica enrolando. A Funai só vai resolver isto aqui depois que acontecer alguma coisa. Depois que morrer alguém. Aí vão olhar aqui", diz o índio Karajá.
Na semana passada, um evento em Campo Grande marcou o início de um movimento dos agricultores para arrecadar recursos para financiar manifestações, pagar honorários de advogados e ampliar a segurança nas propriedades ameaçadas. Isolado em sua fazenda e sem a garantia de segurança policial no caso de um confronto com os índios, Leonardo Palmieri disse a VEJA que está disposto a ir às últimas consequências para defender o que é seu: "Isto aqui virou uma terra sem lei. Eu nunca pensei que tivesse de comprar uma arma para me proteger dentro da minha própria casa. Os fazendeiros de Sidrolândia estão dispostos a morrer dentro da terra deles. Eles têm habeas corpus preventivo, armas registradas e estão seguindo a lei. Já que a Força Nacional não nos ampara, a polícia diz que não pode vir aqui, então nós temos de nos defender sozinhos".
Em Brasília, tenta-se tirar da Funai o monopólio sobre a demarcação de terras indígenas. O governo quer a participação de outros órgãos no processo. A proposta, apresentada em junho por Gleisi Hoffmann, ministra-chefe da Casa Civil, foi atacada ferozmente pela Funai e pelo Cimi. Mas é vital que se chegue a algum critério civilizado, legal, amparado pela Constituição, um marco jurídico que garanta a integridade das propriedades agrícolas vizinhas às reservas indígenas demarcadas — e uma política indigenista que preserve a saúde, a cultura e o bem-estar dos descendentes das populações pré-colombianas do Brasil.
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